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Crítica | Batalhão 6888

Lutando em duas frentes.

por Ritter Fan
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Tyler Perry é um grande e muito bem-sucedido executivo e produtor na indústria audiovisual. Esse seu mérito, que não é trivial, muito ao contrário, ninguém nunca poderá duvidar ou tirar dele. No entanto, suas habilidades como diretor e/ou roteirista são, quando muito, limitadas e, em regra, incapazes de resultar em obras de qualidade. O mais recente exemplo dessa característica negativa de Perry é o drama histórico de guerra Batalhão 6888 que é a versão ficcional da história real sobre o referido batalhão, o único de mulheres afro-americanas a ser enviado para atuar na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.

O inegável valor da produção é trazer à tona essa história que  poucos conhecem e que só foi reconhecida oficialmente como deveria em 2009, permanecendo, até então, enterrada pelas brumas do tempo e pela operação inclemente do racismo sistêmico que, claro, não quer salientar o sucesso de um batalhão que não só era de mulheres, como de mulheres pretas. E o que o “Seis Triplo Oito” fez no teatro de guerra europeu? Separou e direcionou a correspondência engargalada de soldados para sua famílias e das famílias para os soldados A missão pode não parecer importante, pode não envolver combate e pode até parecer simples, mas, se pararmos para pensar em um mundo em que a única forma de se saber as notícias sobre entes queridos era pela correspondência em regra manuscrita enviada pelo sistema de correios das Forças Armadas, que não estava dando conta desse trabalho, com certeza notaremos o quanto era vital de sua própria maneira, especialmente considerando o inacreditável volume de cartas e pacotes que enchiam hangares inteiros.

Trata-se, como a descrição deixa clara, uma daquelas boas e velhas histórias de superação, de luta contras as adversidades e de esforço não reconhecido que ganham contornos ainda mais relevantes diante dos obstáculos impostos às soldadas pelos preconceituosos oficiais brancos que se refestelariam com o fracasso, prova da “inferioridade” de toda uma etnia. O problema é que o roteiro que Tyler Perry escreveu com base em entrevistas com membras do esquadrão que ainda estavam vivas e no artigo jornalístico de Kevin M. Hymel é um exemplo clássico de como o didatismo extremo e o melodrama novelesco têm o potencial de estragar uma história que não precisa de muito para ser imperdível. Os diálogos são como o be-a-bá do racismo, com a mesma sutileza do proverbial elefante em uma loja de cristais e, mesmo quando o assunto não é o racismo, tudo parece artificial, explicado demais, com a inteligência do espectador sendo subestimada constantemente. Quando o didatismo textual não está presente, ele é transmutado em sequências profundamente manipuladores que seriam realmente dignas de novelas mexicanas ou brasileiras, com tudo milimetricamente preparado para arrancar raiva, sorrisos e lágrimas.

O resultado disso é que o elenco encabeçado por Ebony Obsidian (nome de super-heroína ou supervilã de quadrinhos, não?), como uma recruta que perde o namorado branco, judeu e rico no começo do longa, durante a guerra, e Kerry Washington como a Major Charity Adams, comandante do batalhão, não passam de caricaturas de personagens que um dia foram imaginados como realistas. E elas não estão sozinhas nisso, pois até mesmo os veteranos Dean Norris, Sam Waterston, Oprah Winfrey e Susan Sarandon parecem viver arquétipos e não realmente personagens, o que impede qualquer tipo de mergulho efetivo na narrativa, por mais esforço que o espectador possa fazer. É como ver teatro amador em que tudo existe na base de caras e bocas, sotaques forçados e até expressão corporal que beira à comicidade involuntária, uma indicação clara de que Tyler Perry, também como diretor, falhou em sua missão.

E ele falhou também na forma como o filme é construído, já que ele se perde entre a estrutura clássicas de filmes do gênero, com uma sequência inicial de treinamento que  é completamente desperdiçada para vermos as mulheres trabalhando no serviço postal que elas improvam em uma sucessão de cenas que parecem capítulos estanques de uma série e não efetivamente um longa-metragem fluido. Há até espaço para Perry tentar dar uma de Steven Spielberg, ao usar a carta manchada de sangue do namorado de Lena Derriecott (Obsidian) como elemento em cor viva “a ser seguido” para efeitos dramáticos.

O Batalhão 6888 tem uma história fascinante que merecia ser contada, não tenho dúvidas disso. Mas Tyler Perry deveria ter se mantido apenas na produção executiva, deixando a direção e o roteiro em mãos mais competentes, capazes de fazer do material base algo digno do esforço sobre-humano dessas mulheres em condições absurdas, com o “mundo branco” ao redor salivando para que elas falhassem retumbantemente. Quem sabe um dia alguém não se anima e revisita essa narrativa?

Batalhão 6888 (The Six Triple Eight – Reino Unido/EUA, 20 de dezembro de 2024)
Direção: Tyler Perry
Roteiro: Tyler Perry (baseado em artigo de Kevin M. Hymel)
Elenco: Kerry Washington, Ebony Obsidian, Dean Norris, Sam Waterston, Oprah Winfrey, Susan Sarandon, Milauna Jackson, Kylie Jefferson, Shanice Shantay, Sarah Jeffery, Pepi Sonuga, Sarah Helbringer, Jay Reeves, Jeanté Godlock, Moriah Brown, Gregg Sulkin, Donna Biscoe, Baadja-Lyne Odums, Jeffery Thomas Johnson, Nick Harris, Austin Nichols
Duração: 127 min.

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