Nota da temporada
e da série como um todo
(não é uma média)
- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas de toda a franquia Karatê Kid.
Creio ser inescapável a conclusão de que Cobra Kai desde o começo foi e até o final continuou sendo uma continuação tardia apoiada com força na muleta da nostalgia, absurdamente cafona, exageradamente repleta de momentos lacrimosos, inacreditavelmente entupida de discursos motivacionais, composta de uma sucessão infinita de reviravoltas de todas as naturezas, com personagens adultos que não passam de adolescentes birrentos cheios de problemas mal resolvidos e de adolescentes birrentos que chegam até a redefinir a expressão “adolescente birrento” de tão birrentos que são. Creio também, porém, que poucas obras audiovisuais têm coragem verdadeira de se agarrar descaradamente a essas características e, com elas, construir mitologia própria expansiva em cima do que já existia e oferecer o tipo de entretenimento de qualidade que Cobra Kai sem dúvida alguma e com enorme consistência conseguiu entregar ao longo de improváveis seis temporadas, com direito a uma última com cinco episódios a mais, com o Netflix lançando-os com a pompa e circunstância de uma superprodução em três arcos de cinco capítulos em julho e dezembro de 2024 e, finalmente, fevereiro de 2025.
Aliás, quando soube da intenção do serviço de streaming de produzir uma temporada final com 15 episódios lançados em três momentos minha reação inicial foi de apreensão e medo de uma possível megalomania que não se justificava. Isso me levou a só começar a assistir o último ano quando todos os episódios já estavam no ar e, exatamente como em minhas experiências anteriores com a série, aquela sensação de que Cobra Kai não poderia funcionar de verdade transmutou-se no uso de muita concentração e força de vontade para não assistir tudo de uma sentada só, algo que já de algum tempo evito ao máximo fazer, por considerar que o consumo de obras audiovisuais da forma como o Netflix nos “ensinou” tende a criar ansiedade desnecessária e, também, a diminuir a apreciação das séries em si. Porque sim, o sexto e último ano da série é maior, mais audacioso, mais cheio de todas as qualidades duvidosas que listei no início do parágrafo anterior e, ao mesmo tempo, o fechamento ideal para a narrativa, sem que os vários personagens – das duas gerações – sejam esquecidos e retornando com força para colocar Johnny Lawrence (William Zabka) no literal pódio da história, o que leva a um fechamento de círculo invejável para uma série que, no começo, conforme críticos metidos como eu, não tinha nem direito a ser tão boa como é.
E Cobra Kai é tão boa quanto ela é não pela qualidade dramática de seu elenco ou por aspectos de técnica audiovisual, mas sim por ter de sobra algo que é tão brega como a série, mas que é a mais pura verdade: coração. Pronto, eu disse. A série criada por Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald é como uma carta de amor a filmes oitentistas (vários, não só Karatê Kid – A Hora da Verdade e suas frustrantes continuações), mas que tem roteiros que não se escoram desesperadamente a eles ou a referências, ainda que elas estejam presentes o tempo todo, e sim na demonstração aberta e inafastável de que os showrunners colocaram seus corações ali e comandaram uma equipe de roteiristas que, entre altos e baixos, momentos desconcertantes intercalando outros de mais puro deleite, erigiram uma mitologia própria, que anda sozinha, com suas próprias pernas, e que, ao passo em que faz jus aos personagens veteranos (que sim, são criançonas problemáticas até não poder mais), consegue abrir espaço para uma “nova geração” que não faz feio em carregar o bastão (e que sim também, é birrenta até dizer chega) até a linha de chegada com orgulho.
Mergulhando um pouco na derradeira temporada – afinal, essa aqui, em tese, mas só em tese, é uma crítica sobre ela e não sobre a série toda -, apesar de cada um dos blocos de cinco episódios lidar com arcos narrativos que são até surpreendentemente fechados, todos eles contam uma história única que ostensivamente gira em torno do quase mítico campeonato de caratê Sekai Taikai que é, por sua vez, usado como linha mestra para lidar com os eventos que levaram ao fim do dojo Cobra Kai no final da temporada anterior e a união de Lawrence à Daniel LaRusso (Ralph Macchio inexpressivo como sempre) sob a bandeira do Miyagi-Do. Mas, claro, o sinistro John Kreese (Martin Kove) continua armando nas sombras e revive o Cobra Kai das cinzas usando os alunos da escola de caratê coreano de seu antigo e ainda mais violento mestre, com o ridículo super-vilão jamesbondiano Terry Silver (Thomas Ian Griffith) maquinando nas sombras das sombras para fazer com que seu novo dojo secreto, o Iron Dragons, que conta com uma carateca que parece a Formiga Atômica (usada como forma de zombar das influenciadoras de redes sociais em uma jogada ótima), um carateca gigante que é a versão adolescente do Ivan Drago, de Rocky IV e um sensei que é o arquétipo do sujeito mau como o Pica-Pau. Isso é mais do que suficiente para colocar adolescentes e adultos em pé de guerra por tudo e qualquer coisa, com direito a momentos obrigatórios de amorzinho, ciúmes, ataques histéricos, bateção de pezinho, gritos de raiva, chororô e tudo mais que a série sempre ofereceu em quantidades mais do que generosas e que, na temporada final, dobra essa meta.
Se o primeiro arco cansa bastante, com uma tentativa de criar problemas complicados que nem problemas de verdade são e que poderia ter sido resumido a um episódio apenas, o que basicamente quer dizer que a temporada poderia ter continuado a ter 10 episódios, o segundo, com o campeonato em si em Barcelona, na Espanha (uma boa mudança da ares), consegue surpreender por sua dinâmica entre os personagens, pela pancadaria no tatame e, pela primeira vez na série, uma pancadaria generalizada de “encerramento” que não só tem boa coreografia, como faz perfeito sentido narrativo e que funciona muito bem para “ativar” a Arma de Tchekhov que leva ao momento de choque que só é chocante para quem dormiu durante os episódios. No terceiro ato, que é uma reedição do campeonato, só que, agora, na “casa” dos dojos principais, ou seja, no feio San Fernando Valley, os roteiros conseguem acertar todos os golpes e marcar todos os pontos possíveis ao entregar finais perfeitamente moldados aos personagens, inclusive e especialmente, claro, a Johnny Lawrence que tem seu grande momento de volta a uma final lutando contra o comicamente maligno sensei Wolf (Lewis Tan) e, claro, como não poderia haver nenhuma dúvida, seu grande e circular momento de glória.
“Ah, mas é muita preguiça de roteiro que tudo acabe bem para os bonzinhos e tudo acaba mal para os malvados.” – alguns podem dizer, revirando os olhos. Bem, tudo o que eu posso comentar sobre isso é que, se alguém acha que esse tipo de final em Cobra Kai é alguma surpresa que subverte e desfaz tudo o que havia sido construído antes na série, talvez seja a hora de parar de tomar chá de cogumelos enquanto assiste filmes e séries. Esses finais óbvios ululantes e extremamente bregas são da essência de Cobra Kai. Qualquer coisa mais séria, mais complexa, mais pseudointelectual seria, aí sim, um desrespeito à deliciosa bobagem que é a série. Fora que ver Johnny Lawrence sair como o grande herói não tem preço. Portanto, não, não é preguiça, mas sim exatamente aquilo que deveria ter acontecido desde que inventaram de ressuscitar essa propriedade intelectual em 2018 para tirar leite de uma vaca que, tadinha, já estava morta e enterrada, mas que, reconheço com toda a humildade, foi revivida com muito sucesso.
Entre momentos de “caverna de Luke Skywalker em Dagobah“, ressuscitação digital desnecessária do saudoso Pat Morita, criação de um misterioso retcon sobre o sensei falecido, citações diretas e homenagens à franquia Rocky e mais um caminhão de doze eixos de sequências que vão do divertido à vergonha alheia, do cômico ao pseudo-sério e do frustrante ao emocionante, Cobra Kai é uma série que continuamente desafiou todas as probabilidades e que, mais improvavelmente ainda, chegou ao seu fim no seu ponto mais alto. Cobra Kai nunca morre mesmo!
P.s.: Sei que Hilary Swank foi a única atriz dos filmes originais que realmente se firmou em sua profissão e, provavelmente por isso, não quis aparecer na série, mas diria que ela fez a escolha errada. Uma ponta de segundos já teria bastado para fechar o círculo.
Cobra Kai – 6ª Temporada (EUA, 18 de julho e 15 de novembro de 2024; 13 de fevereiro de 2025)
Desenvolvimento: Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald (baseado em criação de Robert Mark Kamen)
Direção: Joel Novoa, Ralph Macchio, Sherwin Shilati, Jennifer Celotta, Joe Piarulli, William Zabka, Josh Heald, Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg
Roteiro: Bob Dearden, Joe Piarulli, Luan Thomas, Mattea Greene, Chris Rafferty, Michael Jonathan Smith, Ashley Darnall, Emily Abbott, Olga Lexell, Kyle Civale, Josh Heald, Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg
Elenco: William Zabka, Ralph Macchio, Courtney Henggeler, Xolo Maridueña, Tanner Buchanan, Mary Mouser, Peyton List, Jacob Bertrand, Gianni DeCenzo, Dallas Dupree, Vanessa Rubio, Martin Kove, Thomas Ian Griffith, Yuji Okumoto, Oona O’Brien, Griffin Santopietro, Aedin Mincks, Khalil Everage, Owen Morgan, Nathaniel Oh, Rose Bianco, Alicia Hannah-Kim, Brandon H. Lee, Daniel Kim, Carsten Norgaard, Lewis Tan, Patrick Luwis, Rayna Vallandingham, William Christopher Ford, Paul Walter Hauser, Okea Eme-Akwari, Joe Seo, Bo Mitchell, Barrett Carnahan, Nick Marini, C. S. Lee, Annalisa Cochrane, Sean Kanan, Bret Ernst, Dan Ahdoot, Hannah Kepple, Diora Baird, Julia Macchio, Ron Thomas, Elizabeth Berkley, Darryl Vidal, Randee Heller
Duração: 601 min. (15 episódios)