Attila é um episódio que exemplifica as qualidades de thriller psicológico da produção. O texto de Erin Wagoner – primeira vez creditado na produção – traz uma dieta de cenas com os personagens “apenas” conversando, muitas das vezes com tons despretensiosos ou falsamente amigáveis, mas sempre com algo sob a superfície, com sugestões e olhares comunicando o subtexto de cada interação, seja ela verdadeira, seja ela enganosa. É um capítulo tão cheio de camadas em cada cena, tão inteligente na construção do clássico “mostre, não conte” que dá vontade de rever muitos momentos específicos do episódio, principalmente os mais sutis. Eu sei que o gancho final e a reintegração de Mark ganha os holofotes dos burburinhos pós-créditos – e falaremos disso em um instante – mas o que vem previamente ao cliffhanger é da mesma – quiçá maior – qualidade, com outro episódio que segue a toada da semana passada, administrando um pouco mais do ritmo, preparando alguns elementos e especialmente desenvolvendo os personagens, tanto o senso cada vez maior de individualidade e de personalidade dos internos, quanto a crescente exploração dos externos.
Já quero logo de cara destacar o bloco do jantar entre Irving, Burt e Fields (John Noble, muito bem escalado), que para mim é o melhor núcleo de todo o episódio. Resgatando o mesmo tom sinistro e com toques de flerte que vimos na cena em que Irving confronta Burt, temos uma espécie de triângulo amoroso bizarro que se desenrola durante o jantar, algo enfatizado pelo roteiro cheio de diálogos desconfortáveis e esquisitos – todo o lance sobre a igreja e a dicotomia de céu e inferno entre internos e externos é tãoooo estranha, e exemplificativa da natureza maligna de Burt -, bem como por uma construção minuciosa de uma atmosfera perturbadora pela fotografia e pela trilha sonora. O texto é sempre sugestivo de que Burt é uma figura perversa que tem laços profundos com a Lumon que datam décadas, antes mesmo do suposto início do procedimento de ruptura. Christopher Walken sempre teve um talento especial para personagens ameaçadores e dissimulados, algo que o ator incorpora com excelência aqui, ainda mais quando lembramos do contraste extremo com sua contraparte sensível na Lumon. Existe tanta coisa escondida por trás de cada diálogo, não só a ligação de Burt com a Lumon, mas a solidão de Irving ganha espaço dramático, bem como sua investigação da empresa – algo confirmado pela invasão de Drummond na casa do personagem, que também confirma a manipulação e “traição” de Burt -, sem falar das linhas religiosas, dogmáticas e ritualísticas que mais uma vez revestem os experimentos da série.
Vejo a mesma abordagem intrigante, sutil e provocativa em outras cenas do episódio. A reunião de Milchik e Huang é a personificação do matar com o olhar, com ego, raiva, inveja, desdém e qualquer outra característica negativa tomando conta das feições dos personagens um pelo outro enquanto Milchik usa sua posição para humilhar e ameaçar Huang – sutilmente nos revelando que a mesma está em uma espécie de estágio, o que começa a expor ainda mais a já bizarra hierarquia da empresa -, antes do supervisor decidir treinar suas “falhas”. Talvez seja forçado, mas enxergo um comentário aqui sobre a maneira como muitas corporações aos poucos apagam qualquer traço de personalidade dos seus funcionários, que vão sendo robotizados e automatizados – Tillman continua trazendo aquele sentimento de um desespero quieto, como se estivesse nesse culto contra sua vontade e a ponto de explodir a qualquer instante. Do outro lado do espectro emocional, temos a complexa e doce trajetória de Dylan conhecendo a esposa do seu externo, que gradualmente tem se desenvolvido em um romance, como se Gretchen estivesse se apaixonando novamente pela pessoa que seu marido já foi ou que tem o potencial de ser. Como falei em outra crítica, esses encontros ganham estranhas linhas identitárias, como se fosse uma traição – mais uma vez, Gretchen mente para seu marido – ou então uma forma perturbadora de expor problemas de relacionamento, só que com um tato de sensibilidade cuidadoso, meigo mesmo de assistir.
O que esse segundo bloco traz à tona, também, é a sobreposição das histórias entre os internos e externos, que tem ganhado cada vez mais abertura na narrativa. Isso fica evidenciado principalmente no arco de Mark, primeiro na cena que ele revela para Helly o encontro sexual com a externa dela – em mais um trabalho assustador do elenco, com Britt Lower comunicando fisicamente o desconforto e o senso de violação (físico e emocional) da sua personagem, enquanto Adam Scott evoca o sentimento de culpa, assim como de desconforto, pelo mesmo ter sido enganado -, dando sequência para mais um momento doce do episódio com os personagens namorando, trazendo novos níveis de desenvolvimento dos internos, cada vez mais distantes das lousas brancas do começo da série; e segundo por conta da continuação da reintegração, com a realidade e a divisão entre os dois Marks gradualmente mais borrada. A transição visual entre o Mark com Huang para o Mark no porão é absolutamente fantástica, puxando a audiência para dentro da experiência desorientadora do protagonista, e nos colocando no mesmo palco de transferência – por um minuto, eu não sabia qual Mark estava em tela. O desenrolar com o encontro no restaurante com a Helena é o ponto de exclamação de que esses mundos vão continuar se convergindo, dando ainda mais lateralidade e aprofundamento para uma narrativa já densa e com linhas psicológicas perturbadoras. O encontro entre os dois é quase cômico no início, mas vai se revelando outro passo manipulativo por parte da Lumon, com mais informações veladas e ameaças nas entrelinhas de cada frase.
Em um episódio que reforça a sobreposição entre internos e externos, entrelaçando a identidade e as interações entre as versões desses personagens com um nível de destreza formidável e com uma qualidade gigantesca na estrutura e na divisão de cada bloco, dando o espaço necessário e a perspectiva de cada lado da história, nada mais justo do que o ápice do capítulo ser a (possível) finalização da reintegração. Pode parecer que estamos de volta ao gancho de Who Is Alive?, mas a história definitivamente não está andando em círculos, progredindo as respostas de alguns mistérios, alavancando os temas do enredo, destrinchando a complexidade dos personagens e do conceito fascinante da ruptura, e misturando, borrando, atravessando dois universos antes separados. Tem muita coisa no ar ainda, claro, o que me preocupa – por exemplo, não vemos Cobel há um bom tempo -, mas temos quatro episódios por vir e quase tudo que vejo aqui me agrada e me deixa animado pelo que vem aí, especialmente o mote em torno daquele elevador sinistro. Minha única grande crítica ao episódio é a participação da Reghabi, que realmente passou de um incômodo para algo que penso ser mal colocado dentro da narrativa, com a personagem sendo uma personificação da conveniência do roteiro, usando-a sempre que precisam resolver algo – notem como ela é a única personagem sem personalidade e sem um arco estabelecido. Mesmo assim, é notável que a médica/cientista/detetive/sabe-tudo move a trama para caminhos interessantíssimos, com o desfecho do episódio deixando o público mais uma vez com a cabeça explodindo (he, he) para saber o que vai acontecer com Mark e companhia.
Ruptura (Severance) – 2X06: Attila | EUA, 21 de fevereiro de 2025
Criação: Dan Erickson
Direção: Uta Briesewitz
Roteiro: Erin Wagoner
Elenco: Adam Scott, Zach Cherry, Britt Lower, Tramell Tillman, Dichen Lachman, John Turturro, Bob Balaban, Alia Shawkat, Stefano Carannante, Sarah Sherman, Christopher Walken, Patricia Arquette, Jen Tullock, Michael Chernus, Sarah Bock, Ólafur Darri Ólafsso, John Noble
Duração: 48 min.