Uma é Dora. A outra é Eunice. A primeira interpretada com intensidade por Fernanda Montenegro. A segunda assumida pelo talento de Fernanda Torres. Ambas habitam narrativas ficcionais inspiradas em histórias reais. Enquanto Dora protagoniza Central do Brasil, Eunice é a heroína de Ainda Estou Aqui. Atravessadas por contextos distintos, mas situadas em narrativas ficcionais onde os conflitos centrais gravitam em torno da conjugação do verbo dramático buscar, as duas figuras ficcionais emocionaram plateias e ganharam bastante projeção na mídia, perpassando por premiações, com autenticações do selo de legitimação da principal premiação ocidental da indústria cinematográfica desde o século passado: o cobiçado Oscar. Mas, para além desse troféu que envolve muito lobby e escolhas questionáveis ao longo de sua história, as travessias dessas duas guerreiras nos mostra o quanto o cinema brasileiro pode alcançar patamares ainda maiores que aquilo já conquistado até então. Sendo assim, nessa reflexão que pretende ser breve, mas elucidativa, pretendo lhe apresentar, caro leitor, as aproximações entre essas duas protagonistas icônicas da nossa cinematografia, representantes ideais para ilustrações em aulas de dramaturgia que refletem sobre a construção de personagens esféricos, conflitos coesos e desempenhos dramáticos arrebatadores.
A ideia de refletir sobre os dois filmes em comparação veio próximo ao desfecho de 2024, diante de todo hype em torno das celebrações em torno do drama Ainda Estou Aqui. Tudo se intensificou com a vitória de Torres na cerimônia do Globo de Ouro, seguida da indicação ao Oscar. Será que vai haver a tal reparação histórica e a brasileira vai trazer o premio “retirado” das mãos de sua mãe no final da década de 1990, instante de constrangimento para a “academia” após a esdrúxula “coroação” de Gwyneth Paltrow como melhor atriz da temporada por Shakespeare Apaixonado? Muitas teorias, opiniões e debates foram empreendidos desde que o filme lançado no final de 2024 ganhou projeção internacional. Com tantas publicações nas redes sociais, sites de cinema e colunas culturais de portais de notícias, como crítico de cinema atuante e sempre em busca de manter conexões entre os clássicos e os fenômenos mais recentes, decidi que tinha que escrever sobre o assunto. Mas, como trazer uma contribuição diferente em meio ao manancial de textos que, em sua maioria, tratam das apostas em torno das possibilidades de Fernanda Torres ser honrada pelo prêmio mais cobiçado do ano?
Sem tempestade de ideias longas demais, decidi incluir no último capítulo do livro Escrita Criativa, publicação organizada com os artigos intitulados Lições de Dramaturgia, veiculados por aqui desde o ano anterior, uma reflexão que contemplasse a atualidade de Ainda Estou Aqui com o nosso acervo valioso, tendo Central do Brasil como um dos dramas mais emocionantes de nossa rica história cinematográfica. Cabe ressaltar que tanto o contemporâneo quanto a produção de 1998 foram dirigidas pelo mesmo cineasta: Walter Salles. Separados por quase três décadas entre os seus lançamentos, ambos os filmes retratam mulheres fortes, lidando com batalhas internas e externas, em busca de respostas que mesmo sendo diferentes em seus contextos e conflitos, espelham doses generosas de humanidade diante de seus espectadores. Dora, menos nobre que Eunice em suas andanças cotidianas na abertura de Central do Brasil, parte em busca de si mesma numa jornada de reparação que envolve as suas memórias mais profundas. Já a personagem principal do drama mais recente, parte numa dolorosa caminhada em busca de respostas em torno do sumiço de seu marido, desaparecido nos porões da ditadura militar.
Ao passo que Dora assume uma “maternidade” que não lhe foi planejada, ao guiar o pequeno Josué, interpretado por Vinícius de Oliveira, pelos confins do nordeste brasileiro, num mapeamento das origens da criança que almeja encontrar o pai após a fatídica morte de sua mãe, Eunice precisa lidar com a dor de um luto que lhe foi negado. Quando Rubens Paiva, seu esposo, interpretado por Selton Mello, é levado por ordem do regime militar para prestar depoimento, mas desaparece sem deixar vestígios. A protagonista precisa lidar com pressões de todo tipo: o que responder aos filhos questionadores sobre o possível paradeiro da figura paterna de uma família abastada, que aparenta viver confortavelmente uma existência social agitada e que, de repente, se encontra diante de um vazio angustiante? E tem mais. Como encontrar as respostas para si? Existem estratégias para disfarçar a intensidade de uma dor interna? Resiliência, tanto em Ainda Estou Aqui quanto em Central do Brasil, é uma significativa palavra-chave para a evolução de suas personagens principais.
Como exposto até então, as duas narrativas em questão são caracterizadas por protagonistas femininas fortes. Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro são os responsáveis pelo roteiro de Central do Brasil. Ao longo de seus 113 minutos, a trajetória de Dora é guiada por elementos muito próximos ao estilo melodramático de narratividade, numa aproximação com os padrões dos principais guias de roteiro, publicados em sua maioria, tendo ilustrações hollywoodianas como ponto de partida para a sua concepção. Aqui, por sua vez, isso não é um problema, tampouco uma crítica. Diferente da estruturação dramática de Ainda Estou Aqui, menos convencional, Central do Brasil é mais fácil na permissão da identificação dos atos, na observação das necessidades dramáticas de seus personagens, bem como em seus conflitos internos e externos.
Em sua saga, Dora é tirada daquilo que chamamos de zona de conforto, salvaguardadas as devidas proporções, como se fosse um desses personagens da famosa Jornada do Herói. Dos dias de aposentaria, escrevendo cartas para pessoas analfabetas que precisam se comunicar, mas não dominam a composição textual, ela inicia uma viagem com o pequeno Josué, alguns dias após a morte de sua mãe, na estação que nomeia o filme. Ao ter que fugir para evitar danos causados por suas atitudes questionáveis no presente, ela resgatará memórias afetivas do passado e projetará as cenas para o seu futuro que se revela incerto e, no desfecho da narrativa, se mantém assim, aberto, para que possamos fazer as nossas intervenções reflexivas. Dora é uma mulher solitária e sua vida reflete um profundo vazio emocional, simbolizando a desesperança de muitas mulheres com mais idade que enfrentam a solidão em grandes cidades, mesmo rodeadas de tanta gente e de agitações. No roteiro, ela passa por um processo de transformação. Inicialmente apática, suas experiências com Josué e a jornada que eles compartilham a forçam a reavaliar seus valores e seu papel na vida dos outros, culminando em um crescimento significativo como personagem. Amizade e pertencimento, nesse esquema ficcional, são palavras-chave essenciais para o desenvolvimento do texto dramático em Central do Brasil. A relação de Dora com Josué evolve ao longo da narrativa, passando de uma dinâmica de tutela para uma verdadeira amizade, estabelece uma conexão emocional que expõe a importância do pertencimento e das relações humanas na superação de traumas e solidões.
O contexto onde o enredo é tecido colabora bastante com a evolução de todos os personagens do filme, em especial, a protagonista, uma mulher que vive em uma realidade social marcadamente desigual. Suas interações com outros personagens revelam as dificuldades que podem ser interpretadas como uma representação das diversas realidades econômicas enfrentadas pelos brasileiros, aliadas ao cotidiano de marginalização e vulnerabilidade que permeia a vida das figuras ficcionais esféricas da trama. Apesar de suas dificuldades, no entanto, Dora demonstra coragem e determinação ao embarcar na jornada de ajudar Josué a encontrar seu pai. Essa decisão ressalta as qualidades heroicas que muitas vezes emergem em situações adversas, revelando a força que pode existir em indivíduos aparentemente comuns. Esférica, a protagonista de Montenegro enfrenta um intenso conflito interno. Sua luta entre a desilusão e a busca por algo maior reflete os dilemas morais e emocionais que muitos enfrentam quando confrontados com a miséria e a injustiça social. E, nesse contexto peculiar, as suas decisões têm um impacto significativo na vida de Josué e nas pessoas ao seu redor. A maneira como Dora escolhe agir, inicialmente com egoísmo, para logo depois, agir com altruísmo, nos permite debates sobre responsabilidade e as consequências de nossas escolhas em contextos de vulnerabilidade. Ademais, a resiliência e uma das tantas possibilidades de identidade feminina se definem como pontos marcantes do enredo.
Ao longo do filme, Dora mostra resiliência diante dos desafios. Sua jornada, que a leva do ponto mais baixo da sua vida a um ato de generosidade e compaixão, é um testemunho da força interior que pode emergir de situações difíceis. Mesmo sem um desfecho padronizado ao estilo hollywoodiano, com demarcação do destino da personagem e de como a sua história termina com exatidão, ela é uma representação poderosa da mulher brasileira em um contexto de adversidade. Sua luta pela sobrevivência, sua busca por significado e sua capacidade de transformação refletem a complexidade da identidade feminina em uma sociedade ainda muito desigual. Em linhas gerais, tal como o protagonismo em Ainda Estou Aqui, Central do Brasil nos apresenta a importância do bom desenvolvimento de personagens para a relação de magnetismo com o público. Na dramaturgia, os personagens são fundamentais para o desenvolvimento da narrativa e para a conexão emocional com o público. Eles podem ser classificados de diversas maneiras, sendo uma das mais reconhecidas a distinção entre personagens planos e personagens esféricos. Essa classificação se baseia na profundidade e complexidade psicológica que cada tipo de personagem apresenta, refletindo diferentes estratégias narrativas e estilos de construção de narrativa. Os personagens planos são aqueles que possuem características bem definidas, mas limitadas. Eles geralmente são concebidos em termos de um ou dois traços principais que não se desenvolvem ou mudam ao longo da trama.
Muitas vezes, esses personagens servem a propósitos específicos dentro da história, como representar estereótipos ou desempenhar papéis secundários que ajudam a desenvolver a narrativa principal. Uma das características mais marcantes dos personagens planos é a sua previsibilidade. Não é o caso de Dora, tampouco de Eunice, mesmo que ambas sejam baseadas em figuras tecidas em material extraído da realidade, fora dos limites ficcionais. Com os planos, o público pode facilmente antecipar suas ações e reações, uma vez que suas motivações e comportamentos são consistentes e não se desviarem do que já foi estabelecido. Exemplos clássicos de personagens planos podem ser encontrados em comédias românticas ou em histórias de aventura, onde heróis e vilões frequentemente são retratados com traços bem marcados e sem muitas nuances. Além disso, esses personagens são frequentemente utilizados para enfatizar temas centrais da obra, pois sua simplicidade permite que a complexidade da trama seja explorada de maneira mais clara. Os personagens planos, portanto, podem ser úteis para criar um ritmo narrativo ágil, mas também podem levar à superficialidade emocional se não forem bem integrados à história.
Em contraste, como podemos contemplar em Ainda Estou Aqui e Central do Brasil, os personagens esféricos são aqueles que apresentam uma rica complexidade psicológica e evoluem ao longo da narrativa. São figuras ficcionais que apresentam uma variedade de traços e camadas que se revelam conforme a história avança. As suas motivações são mais complexas; eles têm falhas, ambições, medos e desejos que os tornam mais humanos e identificáveis para o público. Uma das características mais distintivas dos personagens esféricos é a sua capacidade de transformação. Eles podem começar imbuídos de um conjunto de crenças e valores, mas, ao longo da narrativa, passam por experiências que os forçam a confrontar a si mesmos e evoluir. Isso acontece com Dora. E também com Eunice, uma mulher que, nas entrelinhas, sabia “por cima” o que significavam as reuniões do seu marido e todo envolvimento de seu posicionamento político que culminou em seu doloroso desaparecimento trágico. Essa dinâmica de crescimento pessoal permite uma conexão mais profunda com o público, que pode se ver refletido nas lutas internas e nos triunfos desses personagens. Permite a catarse, cria um senso de envolvimento mais profundo, permitindo maior recalque nos meandros da nossa memória. Dora nos permitiu essa conexão lá em 1998 e, agora, em 2024, Eunice também nos catapultou.
Murilo Hauser e Heitor Lorega são os responsáveis pelo roteiro de Ainda Estou Aqui. Também com linhas de diálogo firmes, estrutura narrativa coesa, o filme só deixa a desejar, em meu ponto de vista, pela ausência de um discurso mais emocionante. É tudo muito contido. Concordei veementemente, balançando a cabeça em postura afirmativa, ao ler a análise do amigo Luiz Santiago, também crítico de cinema, publicada por aqui, logo depois de assistir ao drama numa sessão lotada no desfecho de 2024. Não que esse detalhe tire a beleza e a qualidade dramatúrgica da trama, mas um pouco mais de emoção talvez ampliasse ainda mais a relação com o público, já efetivada com o fenômeno midiático que a narrativa se transformou. Mas, talvez por questões propositais, Walter Salles tenha preferido guiar o elenco e a história que tomou posse para tornar discurso audiovisual. Pois é pelo desempenho dramático de Fernanda Torres, vigoroso ao evitar as armadilhas fáceis da histeria, que a atriz tem colecionado elogios de colegas de profissão, das críticas especializadas e das comissões de festivais com premiações.
É nesse esquema do não dito, mas dolorosamente sentido e expressado pelas rubricas que também se originam do roteiro que Torres entrega a maior atuação de sua carreira. Ao longo dos 135 minutos, considerados longos demais para uma história que se encaixaria perfeitamente em um pouco menos, a atriz expressa os sentimentos acerca das dimensões físicas, sociais e psicológicas que compõem a sua personagem tão esférica quanto à “retirante ao contrário” Dora, de Central do Brasil. De todos os pontos abordados em Ainda Estou Aqui, um dos mais centrais, em minha análise, bem como na inevitável conexão pessoal com o filme, é a ausência de humanidade na impossibilidade de se despedir. A dor inquietante de não ter como finalizar, dentro dos rituais que tecem o nosso contexto cultural, a jornada de um ente querido. Tudo se torna ainda mais angustiante quando o que a olha, em postura covarde e cruel, não é apenas um individuo injusto e valentão que aniquilou a vida de seu marido, pai de seus filhos, mas um sistema opressor representado por uma massa de repressores que decidiam o que podia ou não ser opinado ou sentido, numa das maiores tragédias acerca dos Direitos Humanos e da liberdade de expressão na história social brasileira.
Enquanto assistia e, depois, quando analisava Ainda Estou Aqui, topicalizei os principais pontos dramáticos da narrativa para a ocasião de uma discussão filosófica sobre os elementos que compõem o roteiro da história e, nesse processo, elenquei a natureza da dor e da perda como um de seus pontos nevrálgicos. E, dentro desse único tópico, temos reflexões importantes sobre a violação dos Direitos Humanos, a busca por conhecimento e justiça, o papel da memória, além dos impactos emocionais de quem precisa viver com um tipo diferente de luto, aquele que é sabido e latente, mas que não pode ser confirmado burocraticamente. A dor da perda é uma experiência profundamente humana, que vai além da tristeza pela ausência física. No caso da ausência paterna por desaparecimento forçado, essa dor é exacerbada pela incerteza e pela falta de um encerramento. A negação de um funeral adequado agrava essa dor, pois impede que a família passe pelo ritual de luto, essencial para a saúde emocional e psicológica dos que ficam.
Até mesmo para os mais desprendidos, o sendo de injustiça é avassalador, como podemos perceber na personagem de Fernanda Torres, e na jornada de seus filhos, todos assustados com o panorama que repentinamente se estabelece em casa. A experiência de uma família que não recebe os direitos básicos de luto e homenagem a um ente querido desaparecido destaca a cruel realidade das violações de direitos humanos, muito perpetrada pelo regime militar brasileiro, pois ao promover a desaparição forçada, não apenas ignora a vida do indivíduo, mas também nega a dignidade e os direitos da família envolvida. A injustiça aqui não está apenas na perda da vida, mas na continuidade da dor e da negação de um devido processo de luto. E é isso que os roteiristas emulam com maior destaque ao traduzirem o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva para a linguagem cinematográfica. A dor resultante da injustiça muitas vezes se transforma em uma luta por reconhecimento e por justiça, como é o caso da saga de Eunice. Famílias de desaparecidos frequentemente se tornam ativistas, buscando não apenas a verdade sobre o que aconteceu com seus entes queridos, mas também reconhecimento dos crimes cometidos.
Ao longo da evolução da protagonista, contemplamos esse movimento como uma resposta à dor, transformando sofrimento pessoal em uma busca coletiva por direitos humanos. Conforme vivenciamos ao passo que perdemos pessoas em nossas trajetórias, percebemos que o luto é um processo que envolve não apenas dor, mas também memória e honra à pessoa falecida. Quando um funeral não pode ser realizado, a memória da figura paterna é ameaçada de ser silenciada. Manter viva a memória de um desaparecido é um gesto de resistência e uma forma de manter a história viva, mesmo diante da injustiça. Nesse sentido, a memória se torna um ato de afirmação da vida e da dignidade da pessoa desaparecida. Eis uma das mensagens do livro e, consequentemente, de sua tradução para o cinema. O contexto social e político em torno das injustiças afetadas por regimes autoritários teve um impacto significativo na saúde mental dos indivíduos e das famílias. E, assustadoramente, há ainda muitas pessoas que acreditam piamente na viabilidade desse tipo de regime numa sociedade que já avançou tanto nas últimas décadas, mesmo com todas as suas contradições. E, para encerrarmos, mesmo diante da dor e da injustiça, que tenhamos menos pessoas que precisem ter como experiência de vida, a luta pela verdade e pela justiça que Eunice tomou como tópico engajador de sua existência.
E, que o cinema brasileiro continue ecoando propostas dramáticas como as jornadas de Dora e de Eunice, ilustrações assertivas na concepção de personagens e na edificação de bons enredos.