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Crítica | Bruxaria para Meninas Rebeldes, de Grady Hendrix

O preço da autonomia.

por Ritter Fan
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É muito claramente perceptível o amadurecimento literário de Grady Hendrix no gênero que ele escolheu se debruçar: o horror. Apesar de comandar um humor esperto que ele sabe enxertar em suas narrativas que colocam meninas e mulheres no protagonismo, ele tem clara consciência de como exatamente usá-la e, mais ainda, quando não usá-lo, não se deixando marcar por uma assinatura estilística no estilo “doa a quem doer”, que está presente mesmo quando não é bem-vinda. Se fazia sentido o equilíbrio entre humor e horror em, por exemplo, Horrorstör e O Exorcismo da Minha Melhor Amiga, essa lógica desaparece quase que por completo no maduro Nós Vendemos Nossas Almas e o autor não demonstra problema algum em adaptar-se, sem perder seu estilo, claro.

Depois de quatro romances seguidos lidando essencialmente com mulheres adultas, Hendrix retorna para a adolescência feminina em uma ambientação de época, mais precisamente no verão de 1970, em St. Augustine, na Flórida, para lidar com a terrível noção da completa falta de autonomia de jovens sobre seu próprio corpo, em uma narrativa muito provavelmente influenciada pela recente (em 2022) e infeliz reversão da decisão da Suprema Corte americana de 1973 que, em resumo, permitia o aborto, o conhecido caso Roe v. Wade. Ao justamente situar sua história antes da celebrada jurisprudência, o que Hendrix faz é a conexão direta e inegável com o tempo presente, arremessando crianças grávidas e descasadas (o descasada é um elemento essencial, pois, “como se sabe”, o casamento “resolve” esse inconveniente) em um mundo em que elas não têm direito algum, não podem fazer absolutamente nada que os adultos não mandem elas fazerem.

E esse mundo é um lar para jovens assim comandado com mão de ferro pela Senhorita Wellwood, com direito até a um médico que guarda muitas semelhanças obviamente propositais com a inesquecível Enfermeira Ratched de Um Estranho no Ninho (livro e filme), e para aonde Fern, de 15 anos, é enviada por seus pais para que ela possa deixar sua gravidez indesejada seguir seu curso, seu bebê possa ser levado para adoção e ela, então, possa retornar para casa e para seu nome real (pois Fern é um nome determinado pela Senhorita Wellwood, que mantém anônimas todas as jovens que ali permanecem aprisionadas) sem causar mais vergonha para os adultos para recomeçar sua vida como se nada de relevante tivesse acontecido. Em meio às várias jovens que Fern encontra por lá, ela estabelece conexão com três, a rebelde Rose, que deseja mais do que tudo ficar com seu bebê e morar em uma comuna, Zinnia, de classe social mais alta que estuda música e tem certeza de que voltará para casa para casar com o pai de seu filho e, finalmente, Holly, a mais jovem de todas, muda, considerada “limitada” e grávida de sabe-se lá quem.

Sofrendo todo tipo de restrições físicas e psicológicas e sendo tratadas como doentes e mantidas na completa ignorância sobre seus próprios estados, o único momento com algum semblante de liberdade é quando um furgão-biblioteca para por ali de tempos em tempos e as jovens podem pegar emprestados alguns livros devidamente aprovados por Wellwood. Em uma dessas visitas, Fern é presentada pela bibliotecária com um livro que parece inofensivo, mas que, na verdade é uma espécie de iniciação à bruxaria, o que funciona como o ponto de virada para a situação opressiva em que ela e suas amigas vivem, com uma primeira experiência – um tira-gosto, por assim dizer – dando muito certo e mostrando o poder que elas têm em mãos, poder esse que, como todos, cobra seu preço na medida em que elas passam a querer mais.

No entanto, a bruxaria não é, aqui, uma solução e Hendrix faz questão de deixar isso bem claro não só mantendo essa linha narrativa como pano de fundo, como usando o artifício como estopim para a construção de conexões umbilicais entre as jovens, como uma maneira de mostrar a elas o quanto o que passam é resultado de um sistema injusto e destruidor que faz de tudo e mais um pouco para limitar as possibilidades do que a mulher pode fazer. Afinal, é o Sistema o grande vilão da história, sistema esse representado pelo lar em que passam a viver, pela Senhorita Wellwood, por quase todos que ali trabalham, e também por suas próprias famílias, imediatamente prontas a isolar suas filhas em um lugar hostil somente para que sua imagem diante de uma sociedade perversa não seja maculada. Fern, Rose, Zinnia e Holly descobrem que podem mais, que o mundo é especialmente injusto com elas e, principalmente, que elas, juntas, tem o poder – não sobrenatural, vejam bem – de lutar contra a opressão a que são sujeitas.

Com um tema difícil e pesado desses, como indiquei no início de meus comentários, Hendrix emudece sua veia humorística. Ela ainda está levemente presente aqui e ali, mas o autor sabia que não havia espaço confortável para ela, especialmente porque ele mergulha em uma abordagem que tangencia e por vezes mergulha no horror corporal, o que me fez lembrar de, certa forma, da recente minissérie Gêmeas – Mórbida Semelhança. Ao tratar a gravidez adolescente como um “horror”, ele permite que o leitor veja a situação pelos olhos preconceituosos e manipuladores dos adultos, tornando-nos cúmplices do que é impingido às jovens. A própria bruxaria que, como disse, permanece em segundo plano, torna-se, depois do despertar do espírito de sororidade, muito mais um empecilho do que uma solução, o que faz com que seu romance tenha surpreendentes – e necessários – pés no chão para lidar com o tema central.

Bruxaria para Meninas Rebeldes não é um livro temática ou narrativamente complexo, como nenhum do autor realmente é, e ele carrega demais em um epílogo alongado que cansa um pouco, mas a história é difícil de ler justamente pelo que ela é, ou seja, uma mensagem dolorosa, mas importante e poderosa sobre a luta por autonomia que as mulheres precisam empreender diariamente. O sobrenatural está presente para quem gosta de uma dose de fantasia, podem ter certeza, mas é mais certo ainda que a história de horror que Grady Hendrix conta poderia, muito facilmente, prescindir desse artifício de gênero, especialmente porque ela não está limitada nem temporalmente, nem espacialmente ao que ele retrata e se repete ainda hoje, em muitos lugares ao nosso redor.

Bruxaria para Meninas Rebeldes (Witchcraft for Wayward Girls – EUA, 2025)
Autor: Grady Hendrix
Editora original: Berkley
Data de publicação original: 14 de janeiro de 2025
Páginas: 496

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