A vida de Joana D’Arc, santa famosa por seus feitos na Guerra dos Cem Anos, onde se tornou líder espiritual (e de certa forma, militar) do exército francês, já foi objeto de muitos filmes. No caso de Joana D’Arc, produção de 1948, com Ingrid Bergman no papel-título, o foco está nos aspectos religiosos e simbólicos dessa figura, com Joana sendo mais uma força de inspiração do que uma guerreira. Devido a uma série de problemas — entre eles, o escândalo do caso extraconjulgal de Bergman com o diretor Roberto Rossellini –, o estúdio recolheu a versão do diretor (que chegou a ser exibida) e fez uma versão mais curta para passar em mais horários nas salas de cinema, fazendo com que a versão original de 145 Minutos da obra se perdesse por décadas, até ser resgatada nos anos 90, e é esta versão que é o objeto desta resenha. Na trama, durante a Guerra dos 100 Anos, a jovem Joana D’Arc (Ingrid Berman) escuta vozes que ela acredita pertencer a santos e ao próprio Deus, que a orientam a comandar o exército francês para expulsar os ingleses que ocupam o território francês, e garantir que o herdeiro do trono da França (José Ferrer) se torne o rei. Mas para cumprir o seu objetivo de libertar a França, Joana não vai ter que enfrentar apenas a guerra, mas conspirações políticas dentro e fora de seu país.
Dirigido por Victor Fleming e escrito por Andrew Solt e Maxwell Anderson (inspirado em sua própria peça) Joana D’Arc possui um ótimo ritmo, de modo que o público mal sente as quase duas horas e meia de projeção, mais do que justificadas pela quantidade de acontecimentos que cobre. Mas um dos problemas do filme é justamente como ele lida com o número de eventos que se propõe a tratar. Se em um momento Joana é uma camponesa vista como louca, na cena seguinte, já possui vários seguidores. Se em certa passagem, Joana, a contragosto, permanece na corte do rei da França para guiá-lo, em outro, já é prisioneira da Borgonha, por agir sozinha. O filme cobre esses vácuos através de diálogos, o que significa que pontos importantes de virada na vida da protagonista são falado e não mostrados, gerando uma obra verborrágica e cheia de saltos de desenvolvimento. Pode-se argumentar que é uma herança das origens teatrais do projeto, mas o trabalho de adaptação existe por um motivo.
Não é coincidência que os momentos mais fortes de Joana D’Arc são aqueles em que o filme desacelera e se debruça sobre os eventos mostrados, como as passagens que envolvem a Batalha do Forte de Tourelles e o julgamento da protagonista. Durante essas passagens, o roteiro realmente consegue nos convencer da força inspiradora que Joana representava para aqueles que lutavam ao seu lado e, consequentemente, para a França, assim como a meia hora final transmite toda a fé que a protagonista tinha em suas crenças religiosas e os seus sentimentos de dúvida, quanto se sente abandonada. Esses momentos funcionam porque permitem que o público se envolva emocionalmente com eles.
Apesar dos problemas de roteiro, Joana D’Arc é um filme com valores de produção muito interessantes, especialmente nas passagens situadas nos castelos e propriedades da igreja e da nobreza francesa, transmitindo a opulência desses locais ao mesmo tempo em que retrata a decadência pela qual estavam passando. Os figurinos também merecem destaque, não só tendo um importante papel para a reconstituição da época, mas por demarcar a personalidade dos personagens sem precisar gritar que está fazendo isso. As poucas cenas de combate são competentes por conseguirem demonstrar intensidade sem grande violência (excetuando uma profética passagem envolvendo fogo), o que é mérito do diretor, que mesmo não trabalhando com o maior dos orçamentos da época, consegue conferir certa grandiosidade para as batalhas.
Mas o carro-chefe de Joana D’Arc é mesmo o seu elenco, que mesmo tendo que lidar com a exposição pesada do roteiro, entrega ótimas performances. Ingrid Bergman despe-se de toda a vaidade e glamour que caracterizaram boa parte de suas personagens em Hollywood até aquele momento, para entregar uma atuação que vende toda a austeridade e a força de Joana, e ainda entrega, nas sutilezas, as dúvidas e o peso que a mulher sente pelo fardo que carrega, jorrando em uma torrente de raiva, medo, e tristeza, no terço final da obra, sem se deixar afundar no melodrama que facilmente poderia tornar a personagem caricatural. José Ferrer também merece elogios pela composição do Rei Carlos VII, entregando uma performance carismática que faz do rei a figura mais complexa do longa, um homem pragmático, e plenamente consciente de suas fraquezas e falhas de caráter, mas que honestamente reconhece e admira a nobreza e a coragem da personagem-título, até se deixando contagiar por essas qualidades, em raros momentos.
Cinebiografias são sempre difíceis, especialmente quando se propõem a trabalhar com uma quantidade significativa de eventos, como é o caso aqui. Mas, para um filme relativamente longo, Joana D’Arc muitas vezes soa terrivelmente apressado. Com isso, não quero dizer que o longa precisava de uma duração maior, mas que uma história tão dependente de intensidade emocional quanto é a de Joana D’Arc, não poderia depender de tanta exposição verborrágica. Apesar dos problemas de roteiro, esta produção de 1948 tem os seus encantos, especialmente pela direção segura de Victor Fleming, que consegue fazer muito com relativamente pouco para os padrões hollywoodianos, e pela entrega de seu elenco. Mas, apesar dessas qualidades, acabei saindo da sessão com a sensação de que vi algo que teve muito de seu potencial desperdiçado.
Joana D’Arc – Estados Unidos, 1948
Direção: Victor Fleming
Roteiro: Maxwell Anderson, Andrew Solt (Baseado em peça de Maxwell Anderson)
Elenco: Ingrid Bergman, Francis L. Sullivan, J. Carrol Naish, Ward Bond, Shepperd Strudwick, Gene Lockhart, John Emery, Leif Erickson, Cecil Kellaway, José Ferrer, Selena Royle, Robert Barrat, Jimmy Lydon, Rand Brooks, Roman Bohnen, Dennis Hoey, Taylor Holmes, Morris Ankrum, Russell Simpson, Jeff Corey
Duração: 145 min.