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Crítica | O Auto da Compadecida 2

Repetecos e algumas ideias novas.

por Roberto Honorato
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Poucas obras são tão queridas ou representam tão bem o Brasil e nosso cinema do que O Auto da Compadecida. É o tipo de filme que melhor revela os contrastes do nosso país, mostrando a beleza da língua em cada trocadilho e diálogo sagaz da dupla de malandros Chicó e João Grilo, mas sem ignorar uma crítica pontual sobre as absurdas desigualdades sociais que fazem com que esses mesmos personagens sejam tratados como animais, por vezes até pior. Esse longa se tornou quase um tesouro nacional e um queridinho protegido até por aqueles que falam baboseiras sobre nosso cinema por puro preconceito e vira-latismo. É curioso como uma produção tão adorada demorou para receber uma continuação, duas décadas depois, com o retorno de seus personagens principais e algumas novidades, porém mantendo as principais batidas narrativas que fizeram do primeiro filme um clássico.

Em O Auto da Compadecida 2, retornamos para a cidade de Taperoá, vinte anos após o desaparecimento de João Grilo, que deixou Chicó para contar sua impressionante história de como conseguiram derrotar o diabo e ressuscitar com a ajuda da Nossa Senhora. Por conta de seu grande feito e o talento de seu amigo para histórias convincentes, João Grilo se tornou uma espécie de santo para os habitantes da pequena cidade no sertão, atingindo um status de celebridade e influenciador tão grande a ponto de chamar a atenção dos dois maiores políticos da região, que vão fazer de tudo para conquistar as graças do pobre homem e fazer com que ele crie uma ponte entre o candidato e seu eleitorado. Quando percebem que estão causando uma comoção e aumentando a tensão entre os candidatos, Chicó e João Grilo precisam se unir novamente para encontrar um jeito de enriquecerem. 

A mudança causada pelo tempo é visível na cidade de Taperoá, com a chegada de novos meios de transporte, veículos de comunicação e tecnologias diversas para a população. É claro que há um anacronismo nessa linha temporal, porém ele serve um propósito interessante dentro da narrativa maior de urbanização e ainda maior segregação social, mantendo a crítica sobre privatização de terras e a manipulação de meios de comunicação para influência política. Os melhores momentos do longa estão nesse miolo, com a dupla protagonizada por Selton Mello e Matheus Nachtergaele bolando esquemas para enrolar os políticos interpretados por Humberto Martins e Eduardo Sterblitch, esse seguindo uma personagem que representa uma ideia de avanço tecnológico que poderia destoar completamente desse universo, mas felizmente a abordagem caricata do ator ajuda bastante a manter as interações entre ele e a dupla de protagonistas, principalmente Nachtergaele. 

Existem algumas diferenças-chave entre a obra original e essa, seja pela ausência do texto do grandioso Ariano Suassuna ou um formato feito direto para o cinema (ao contrário do original, que nasceu como uma minissérie de TV e foi editada para caber em um longa-metragem). É claro que também foi necessária uma adaptação do teatro de Suassuna para um formato audiovisual da TV e cinema, e a mesma equipe retorna para escrever o enredo dessa continuação, precisando atualizar o espectador nos últimos vinte anos da vida das personagens, além de estabelecer novos ângulos narrativos para inseri-los. Se por um lado o filme brilha quando tenta contextualizar as personagens nesse novo mundo de avanço tecnológico, também consegue retomar os embates entre a dupla principal e figuras de autoridade, mantendo os conflitos com os cangaceiros, porém focando em políticos e outros tipos de charlatões.

Mesmo com o retorno de Mello e Nachtergaele, a maioria das personagens coadjuvantes são novas adições, e elas são engraçadas, mas acabam servindo mais como um estepe para o vácuo deixado por outros atores que estiveram no filme original e não conseguiram retornar por diversos motivos. Isso não só tira um pouco o ritmo de algumas cenas que seriam ótimas com personagens novos pensados para esse contexto específico, como fica mais evidente quando o filme decide, na sua segunda metade, abandonar muito da história principal e simplesmente reciclar a trama conhecida do primeiro longa, com referências e menções diretas que servem pra matar a saudade, mas comprometem uma história que estava indo bem, tudo para apelar por um segmento nostálgico que tenta desesperadamente aumentar a escala e a importância da cena, mas não consegue se sustentar; isso acontece como Taís Araújo, que eu geralmente adoro, mas aqui ela parece mais estar prestando uma homenagem ao papel de Fernanda Montenegro do que fazendo sua própria versão da Nossa Senhora.

O uso mais extensivo de efeitos visuais digitais também distrai um pouco por conta da textura, que na superfície mantém a ideia de um cenário artificial que simula as dimensões de um palco de teatro, embora aqui fique mais plástico e sem vida do que simplesmente algo que parece ter sido feito de cartolina. Para compensar essas tomadas externas que tiveram muita influência de tela verde, a direção de Arraes e Lacerda é bem mais minuciosa nos interiores; e sabendo que, por conta da idade dos atores, é impossível esperar que o mesmo nível de comédia física de duas décadas atrás seja alcançado, o filme investe mais em uma comédia visual de interação com objetos e um timing certeiro, e por isso há um trabalho de iluminação e design de produção muito bem pensado, como os segmentos que se passam na igreja. Por conta de uma quantidade menor de atores no elenco principal e falante, fica uma sensação de que o mundo que conhecíamos não é mais tão diverso quanto antes, mas o filme consegue dar atenção para os dramas mais importantes, como o romance do casal Chicó e Rosinha (Virgínia Cavendish).

O Auto da Compadecida 2 é um divertido e emocionante retorno para matar a saudade de personagens que fizeram parte da vida de muitos brasileiros, e mesmo que não possua tantos coadjuvantes e situações absurdas quanto o original, consegue construir uma narrativa própria, até quando apela para a reciclagem da história que já conhecemos, subvertendo alguns elementos e brincando com a expectativa do público, que por vezes não sabe em quem confiar, mas não consegue deixar de sorrir assistindo um elenco talentoso e carismático. 

O Auto da Compadecida 2 – Brasil, 2024
Direção: Guel Arraes, Flávia Lacerda
Roteiro: Guel Arraes, João Falcão, baseado na obra de Ariano Suassuna
Elenco: Selton Mello, Matheus Nachtergaele, Kauã Rodrigues, Taís Araújo, Luisa Arraes, Virginia Cavendish, Juliano Cazarré, Humberto Martins, Luis Miranda, Eduardo Sterblitch
Duração: 104 min.

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