- Há spoilers das demais séries da franquia, mas não deste episódio.
Na atual Hollywood, que freneticamente cava toda e qualquer propriedade do passado para dar-lhe uma nova vida (dependendo do caso, mais uma nova vida), e, com isso, aproveitar-se da reputação e da nostalgia “embutida” que vem com a criação original, nada, absolutamente nada é sagrado. Depois de oito temporadas, Dexter acabou com um fim para seu protagonista que eu, talvez o único a achar isso, considerei perfeitamente condizente com tudo o que fora construído anteriormente. Era, para todos os efeitos, um final definitivo que, claro, acabou não sendo, com a série voltando oito anos depois na forma de Dexter: New Blood, minissérie de 2022 em que, aí sim, ganhamos um final realmente definitivo, com a inequívoca, inafastável, inarredável morte de Dexter Morgan por seu próprio filho.
Mas um tiro no peito a curta distância com uma espingarda de caça não é obviamente algo que impeça Hollywood de dar seu jeito de desfazer na cara dura, e Dexter: Pecado Original, que eu achava que seria apenas um prelúdio (“como poderia ser outra coisa, não é mesmo?”, indagou minha inocência), revela-se, na verdade, como um enorme flashback dentro de tecnicamente uma continuação, já que Dexter (Michael C. Hall), quase morto, mas definitivamente ainda vivo e sendo operado em um hospital logo depois de ser baleado, vê sua vida literalmente passar diante de seus olhos, o que funciona como artifício de enquadramento para retornarmos para o começo dos anos 90 com o personagem cabeludo, com 20 anos, e encarnado por Patrick Gibson, tentando controlar seus cada vez mais constantes impulsos de serial killer. Se Dexter: New Blood acabou sendo, para minha surpresa, uma boa “continuação atrasada” – ou série legado, como queiram – a ressurreição de Dexter Morgan para servir de gancho para um prelúdio até que não foi uma má ideia.
Deixem-me apenas contextualizar minha última afirmação acima. Eu sei que Dexter: Pecado Original é uma desavergonhada exploração da nostalgia dos fãs da série original. Eu sei que Dexter: Pecado Original é mais uma prova de que Hollywood cada vez mais só sabe viver de jornadas pelos caminhos mais viajados. Eu sei que Dexter: Pecado Original é um prelúdio completamente desnecessário. E, finalmente, eu sei que reviver Dexter Morgan é uma estratégia safada dos produtores que, com isso, vão continuar tirando leite da proverbial vaca. Diria que tudo isso que eu sei é óbvio para todo mundo também, mas não acho que isso tira o mérito de que pelo menos o retorno de Dexter Morgan para o mundo dos vivos tem um uso no mínimo interessante e… diferente, daí meu reticente elogio.
Sobre o episódio inaugural do prelúdio, o que tenho a dizer é que, muito mais do que New Blood, Pecado Original parece apoiar-se fortemente na nostalgia, basicamente fazendo das tripas coração para ser uma versão direta da série clássica só que passada nos anos 90 em Miami, algo que fica evidente logo na sequência dos créditos de abertura que é uma bem sacada recriação, com direito até à excelente música tema composta por Rolfe Kent, da abertura original que, diga-se de passagem, é uma das melhores já feitas na História da TV. Tudo que segue daí é milimetricamente criado para afagar o espectador saudoso por mais Dexter Morgan, com Gibson, mesmo com uma ridícula peruca de cabelos ondulados longos, basicamente tentando ser Michael C. Hall e muitas vezes até conseguindo, o mesmo valendo para Molly Brown, que tenta com menos sucesso ser a Debra Morgan de Jennifer Carpenter e com James Martinez e Alex Shimizu quase que literalmente imitando, trejeito a trejeito a ponto de ficar um pouco ridículo, Angel Batista e Vince Masuka de David Zayas e C.S. Lee.
O único personagem central da série original que ganha uma encarnação fisicamente muito distante da original é Harry Morgan, já que Christian Slater é bem diferente em tudo de James Remar e não faz esforço algum – ainda bem! – para imitá-lo, ainda que ele seja fonte de um particularmente perturbador flashback dentro do flashback que, suspeito, será uma desnecessária constância na série. Claro que há personagens novos na história, notadamente o chefe de polícia Aaron Spencer (Patrick Dempsey com maquiagem e penteado que situam a série nos anos 70, porém) e a técnica forense Tanya Martin (Sarah Michelle Gellar em participação especial) que, tenho certeza, serão usados como instrumentos de incertezas e de liberdades dramáticas justamente por eles não terem as amarras de versões “no futuro” para criar incongruências, e que servem, aqui nesse começo, para levantar sobrancelhas de curiosidade. Mas não muita curiosidade, vale dizer.
O grande problema da premissa de um prelúdio da série original é que ela já era carregada de flashbacks mostrando a relação de Harry com Dexter, em que o primeiro, no lugar de procurar ajuda profissional, decide ensinar seu filho adotivo a canalizar seus impulsos assassinos, criando um “código” que acaba fazendo de Dexter o que ele é na série: um serial killer que mata assassinos, ou seja, alguém que usa sua psicopatia pelo menos em princípio a favor da humanidade, ainda que completamente em desfavor da lei e não sem um caminhão de efeitos colaterais mortais. Tudo bem que Pecado Original foca em um período menos explorado nos flashbacks originais, mas, mesmo assim, tudo está bastante amarrado pela mitologia criada entre 2006 e 2013, inclusive o ponto nodal do episódio, que é nos apresentar à primeira vítima de um Dexter quase incapaz de controlar seu Passageiro Sombrio, algo que decorre de um problema médico que seu pai tem durante uma excursão de caça.
Em outras palavras, Dexter: Pecado Original, está preso a uma camisa de força se, claro, o objetivo for respeitar o que veio antes (ou virá depois, depende do ponto de vista), algo que é cada vez mais necessário diante de fãs que se recusam a aceitar todo e qualquer tipo de desvio ou adaptação de obras que adoram, e que tenho dificuldade em compreender, mas tudo bem. Ou seja, temos aqui um caso de sinuca de bico, de “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” que pode transformar a nova série em nada mais do que um exercício podado de preenchimento de espaços vazios que ninguém nunca considerou que estavam vazios e que, por isso, não precisavam ser preenchidos. Falo de coisinhas como o primeiro contato de Dexter com Masuka, sua incapacidade de ter sentimentos afetando sua relação com a irmã antes de ela compreender essa questão, como ele conseguiu seu emprego de técnico forense especialista em padrão de respingos de sangue e assim por diante. É pouco demais para sustentar 10 episódios – na esperança de que estejamos diante de uma minissérie e não de uma série com várias temporadas -, o que exigirá muita inventividade dos roteiros, algo que sem dúvida pode acontecer, mas que normalmente não acontece.
A nostalgia, portanto, segura o primeiro episódio de Dexter: Pecado Original, criando momentos que podem fazer com que aqueles que viram a série original sintam-se felizes em apontar para a tela e dizer em voz alta – sozinhos ou acompanhados, tanto faz – o que eles significam exatamente. Mas esse é um exercício que, como acontece com qualquer novidade, cansa muito rapidamente e não sustenta narrativas, pelo menos não boas narrativas. Fica a torcida, portanto, para que o velho novo Dexter Morgan tenha algo mais a oferecer do que apenas a mesma coisa, só que com ele mesmo mais jovem enquanto sua versão mais velha indecentemente revivida passa por intervenções cirúrgicas.
Dexter: Pecado Original – 1X01: E no Começo… (Dexter: Original Sin – 1X01: And in the Beginning… – EUA, 13 de dezembro de 2024)
Desenvolvimento: Clyde Phillips (baseado na série desenvolvida por James Manos Jr. e na obra de Jeff Lindsay)
Direção: Michael Lehmann
Roteiro: Clyde Phillips
Elenco: Patrick Gibson, Christian Slater, Molly Brown, James Martinez, Alex Shimizu, Reno Wilson, Patrick Dempsey, Michael C. Hall, Sarah Michelle Gellar
Duração: 50 min.