Teve uma época que era comum achar que Duna, a épica hexalogia literária de ficção científica de Frank Herbert era infilmável, mas isso nunca foi realmente verdade. Alejandro Jodorowski foi o primeiro a tentar, ainda na década de 70, mas tudo o que ele conseguiu, décadas depois, foi ter sua frustrada jornada esmiuçada em um documentário lançado em 2013. David Lynch teve mais sorte em 1984, com um filme que viu a luz do dia, mas que, porém, tem pegada própria ditada por uma série de problemas de ordem financeira e que fica bem longe tanto do material fonte, quanto do estilo do cineasta, ainda que com valor e ousadia. Corta para os anos 2000, e o Sci-Fi, hoje SyFy, produziu e levou ao ar duas minisséries que conseguiram, com razoável qualidade (especialmente a segunda), adaptar os três primeiros romances originais. E, com isso, chegamos ao presente recente em que Denis Villeneuve levou o primeiro livro para as telonas em duas superproduções muito bem recebidas que, então, inevitavelmente resultaram em exploração posterior pela HBO que, assim como foi com Pinguim, assumiu a produção que antes tinha apenas o selo Max, emprestando-lhe mais solenidade.
O resultado é Duna: A Profecia (antes Duna: A Irmandade), um prelúdio que se passa um pouco mais de 100 anos depois do chamado Jihad Butleriano em que a inteligência artificial desse universo acabou banida e pouco mais de 10 mil anos antes do nascimento de Paul Atreides, a culminação do trabalho seletivo das Bene Gesserit, ordem de mulheres com poderes especiais que, na prática, manipulam e comandam toda a humanidade espalhada pelo universo conhecido. Se o leitor por acaso não tiver entendido nada do que escrevi na frase precedente, não se preocupe, pois Diane Ademu-John e Alison Schapkero, que desenvolveram a série, com a primeira tendo escrito o roteiro de A Mão Oculta, previram essa situação e, feliz, mas também infelizmente, dedicaram-se a explicar e contextualizar tudo, usando o capítulo inicial para isso.
Um universo com uma mitologia tão expansiva que abarca dezenas de milhares de anos naturalmente carrega um ônus, ônus esse que o criador de tudo, Frank Herbert, sempre tirou de letra ao simplesmente não se aprofundar em detalhes para complicar tudo desnecessariamente. O que eu escrevi no parágrafo anterior realmente resume quase tudo o que o autor fala sobre esses eventos em seus romances, pois ele sempre prezou pela filosofia de sua concepção e não pelas minúcias, algo que seu filho Brian Herbert, ao lado de Kevin J. Anderson, nunca realmente entendeu, já que a dupla saiu escrevendo um gigantesco número de livros – inclusive a trilogia que inicialmente inspirou mais diretamente a série sob análise – que transformou cada elemento dos livros originais quase que em miniuniversos próprios, bem na linha do que fãs fazem com fanfics.
E é isso que vemos no capítulo inicial de Duna: A Profecia. Tudo começa com 15 minutos de prelúdio em que a guerra contras as máquinas é abordada, a queda da Casa Harkonnen é mencionada, o conceito das Bene Gesserit é explicado, com a visão da Madre Superiora Raquella Berto-Anirul (Cathy Tyson) que quer controlar as dinastias de regentes com casamentos e proles seletivos causando uma divisão na irmandade, com a jovem Valya Harkonnen (Jessica Barden) saindo vitoriosa dessa cisão e, mais velha, vivida por Emily Watson, passando então a comandar a ordem, continuando com o projeto de Raquella. Esse “prelúdio do prelúdio” não é nem de longe o problema do episódio. A questão primordial é que o que vem depois, no tempo presente da série, continua sendo, para todos os efeitos, um prelúdio. Durante 50 minutos, tudo o que temos é a apresentação dos personagens que, em tese, serão desenvolvidos ao longo dos próximos cinco capítulos, uma tarefa que, se for cumprida mesmo que pela metade, será tão milagrosa quanto o nascimento do Kwisatz Haderach.
Vemos o Imperador Javicco Corrino (Mark Strong) lutando contra a esposa e contra seus próprios sentimentos para casar sua filha, a já adulta Princesa Ynez (Sarah-Sofie Boussnina) com uma criança de nove anos da Casa Richese, unicamente em razão do dote oferecido, uma frota de naves para ajudar a controlar os insurgentes em Arrakis. Aprendemos que Ynez tem uma queda por Keiran Atreides (Chris Mason), seu instrutor de armamentos e que, ainda por cima, ela é chave para que Valya efetive um plano em andamento há décadas: colocar uma Bene Gesserit no trono do Império, algo que o vindouro treinamento da princesa como acólita, tornará possível. E, dentre diversos outros personagens que, podem ter certeza, não comentarei por pura fatal de paciência, há o mais interessante de todos, Desmond Hart (Travis Fimmel), um assustador guerreiro – ou seja, o padrão para Fimmel – em tese fiel ao imperador que parece ter sido o único sobrevivente de um ataque mortal em Arrakis.
Vocês já devem estar imaginando aonde quero chegar, não é mesmo? Afinal, a produção é suntuosa, com cenários que parecem inspirados na arquitetura brutalista, figurinos variados e rebuscados, um CGI que não é a coisa mais maravilhosa do mundo, mas mais do que dá para o gasto, um elenco bom, mas ainda subaproveitado, ou seja, tudo o que era de esperar. Mas passar 66 minutos ouvindo explicações didáticas sobre tudo e todos não é, definitivamente, minha praia. Talvez eu saiba mais da mitologia de Duna do que o público em geral e isso tenha atrapalhado minha imersão, mas creio que não é essa a raiz da questão. O ponto nodal é que A Mão Oculta é como uma lousa de professor preguiçoso que, no lugar de dar aula, escreve e desenha por horas com giz colorido ou, revelando menos minha idade, faz uso generoso de apresentação de PowerPoint vistosa e repleta de texto que ele, então, lê para os alunos. O didatismo impera e o didatismo, claro, cansa e retira o espaço que os atores têm para fazer o que precisam fazer, ou seja atuar.
No entanto, mesmo que o episódio inaugural queira fazer coisa demais com pouco tempo e, por isso, tenha que recorrer aos artifícios que mencionei, ele está longe de ser desinteressante. Entre uma explicação e outra, especialmente no que se refere ao personagem de Fimmel pelo mistério que representa, e, claro, ao de Watson pelo simples fato de ela ser a marionetista-mor, é perfeitamente possível vislumbrar uma história de intrigas palacianas com um inimigo nas sombras que pode vir a ganhar tração nos episódios seguintes, especialmente considerando o “chocante” cliffhanger. Além disso, a direção de Anna Foerster é sensível aos elementos expositivos e faz o melhor na decupagem para criar um ritmo constante que faz o tempo passar mais rápido do que se poderia imaginar. Em outras palavras, temos um começo cambaleante, mas ambicioso, para algo que pode ser realmente cativante dentro do universo de Duna. Talvez baste salpicar um pouco mais de especiaria para tudo começar a funcionar de verdade.
Obs: Sim, eu sei que Duna: A Profecia parece ser para Duna de Villeneuve o que A Casa do Dragão é para Game of Thrones, mas minha pergunta é: e daí?
Duna: A Profecia – 1X01: A Mão Oculta (Dune: Prophecy – 1X01: The Hidden Hand – EUA, 17 de novembro de 2024)
Desenvolvimento: Diane Ademu-John, Alison Schapker
Direção: Anna Foerster
Roteiro: Diane Ademu-John
Elenco: Emily Watson, Jessica Barden, Olivia Williams, Emma Canning, Jodhi May, Sarah-Sofie Boussnina, Chloe Lea, Chris Mason, Shalom Brune-Franklin, Mark Strong, Travis Fimmel, Jade Anouka, Edward Davis, Josh Heuston, Faoileann Cunningham, Aoife Hinds, Jihae, Camilla Beeput, Cathy Tyson, Brendan Cowell, Laura Howard, Tessa Bonham Jones, Charlie Hodson-Prior
Duração: 66 min.