A mensagem que Alfonso Cuarón deseja passar com sua adaptação do romance homônimo (publicado por aqui como Difamação) que a britânica Renée Knight lançou originalmente em 2015 é muito atual e muito importante, transitando entre comentários ácidos sobre a cultura do cancelamento e a pressão da sociedade sobre a mulher, para usar descrições amplas que evitam os spoilers. No entanto, de maneira semelhante ao seu aclamado, visualmente lindo, mas, em última análise, vazio Roma (essa é especialmente para o pessoal que gosta de comentar coisas como “parei de ler quando…”), o cineasta mexicano é todo forma sobre substância nesta minissérie de sete episódios produzida para o Apple TV+, estrelada por Cate Blanchett.
É, porém, inegavelmente uma grande forma. Cuarón, que produziu, roteirizou e dirigiu todos os capítulos, está no domínio absoluto de sua arte e de sua obra, que ele constrói visual e auditivamente com enorme espero, extraindo o melhor da direção de fotografia de Bruno Delbonnel e Emmanuel Lubezki e da intricada arquitetura sonora de uma equipe afiada composta, dentre outros, por Steve Finn. Com uma história que transita entre dois momentos temporais e espaciais principais, o primeiro no presente em Londres e o segundo nos anos 80 na Itália e que conta com uma rara narração principal em segunda pessoa (por quase todo o tempo) por Indira Varma que, confesso, por alguns episódios achei que era da própria Blanchett, a minissérie é um thriller psicológico e de mistério que tem como ponto de partida a publicação de um livro por Stephen Brigstocke (Kevin Kline) que revela os detalhes sobre a morte de seu filho Jonathan (Louis Partridge) décadas antes e que implica a premiada documentarista Catherine Ravenscroft (Blanchett), casada com Robert (Sacha Baron Cohen), diretor de uma ONG corrupta e mãe de Nicholas (Kodi Smit-McPhee), que tem problemas com drogas.
Cuarón joga seu reluzente anzol com gordas e saborosas minhocas para fisgar de imediato o maior número possível de espectadores já nos minutos iniciais da minissérie, mas, na medida em que a narrativa caminha, com o efeito hipnotizador que constrói atmosfera esvaindo-se pela insistente e implacável repetição dos artifícios da não-linearidade, da fotografia azul acinzentada no presente na Inglaterra contrastando com a paleta de cores mais ampla e forte, com filtro suave, no passado na Itália, e pelo som que vem e vai em ondas que chegam a chocar, o que resta é uma história que fica em banho maria por tempo demais até chegarmos no sétimo e último episódio em que a obrigatória – e mais do que completamente telegrafada a ponto de ser óbvia – reviravolta vem para alterar nossa percepção de tudo o que veio antes. Temos, aqui, mais um exemplo de uma obra que é concebida ao contrário, ou seja, um final bacana que exige todos os malabarismos possíveis do manual de produção de séries para que seja possível chegar lá.
Apesar de entender muito claramente a lógica da narração em off, existe um limite para tudo e esse limite é ultrapassado com muita folga por um Cuarón que, não satisfeito com o que está bem claro na tela, decidiu que seu público precisa ser amparado pelo cansado e enfadonho subterfúgio da explicação de tudo o que vemos e, também, de tudo o que tínhamos todas as ferramentas para deduzir, retirando do espectador todo o trabalho de engajamento intelectual com a minissérie. Se Robert, chocado com o que descobre sobre sua esposa, está com sua mente distante durante uma reunião importante de sua ONG, não basta que a câmera enfoque em Sacha Baron Cohen com olhar perdido, trabalhe extremos close-ups em seu rosto para distanciá-lo de tudo o que vê, com direito a desfoque do segundo plano. Não! Isso é muito pouco! É essencial que a voz de Indira Varma invada aquele ambiente para explicar detalhadamente o que ele está sentindo. O mesmo vale para quando Nicholas se entrega ao vício de vez ou quando, no passado, vemos a consideravelmente explícita interação da jovem Catherine (Leila George) com Jonathan.
Novamente, existe uma evidente razão para a existência de uma narração em segunda pessoa que eu não posso detalhar mais por aqui para manter a crítica livre de spoilers, mas uma coisa é usar esse artifício aqui e ali para reiterar ou realmente explicar algo não totalmente claro, outra bem diferente é fazer de Disclaimer essencialmente a primeira minissérie da história que já vem com áudio descritivo. Chega a ser engraçado que Kevin Kline também tenha sua própria narração, ainda que bem menos proeminente (ainda bem!), pois, em determinado ponto da minissérie, quando o passado foi revelado antes do twist, que o roteiro é um duelo de narrações em off, o que tira a força e, principalmente, todo e qualquer semblante de desafio que a narrativa possa oferecer ao espectador, já que nós passamos a ser alimentados com colheradas de papinha de bebê para sequer termos que mastigar.
A escalação de Cate Blanchett no papel principal foi inspirada e não somente por sua costumeiramente ótima atuação, mas, principalmente, pela necessidade do roteiro de criar um contraste forte entre a rica, premiada e aristocrata Catherine no começo, antes da publicação do livro, com a emaciada, triturada e desprezada Catherine da metade para o final, depois que ela vê sua vida em frangalhos. Poucas atrizes conseguem ir do 80 ao 8 de maneira tão convincente e sem nenhum uso de prótese, só mesmo maquiagem e penteados “cotidianos”, mas transformativos, como Blanchett e, aqui, ela está em seu metiê. Leila George, como a versão mais jovem de Catherine, porém, rouba o show não só pelas sequências risqué que protagoniza, como pela maneira como ela faz o correspondente ao que Blanchett faz ao longo da temporada em apenas um episódio, sem por um momento parecer artificial. Kevin Kline, confesso, foi uma gratíssima surpresa, pois não só seu personagem em tudo contrasta o de Catherine – inclusive na casa humilde, escura e caindo aos pedaços em comparação com a mansão belíssima, clara e envidraçada dos Ravencrofts -, como ele é capaz de criar personagens dentro de personagens na medida em que mergulha mais a fundo em sua missão de vingança pela morte do filho.
Por outro lado, Cohen, apesar de seus papéis dramáticos anteriores, não consegue convencer aqui como o marido ferido e pai amoroso, até mesmo como o pai que finge ser amoroso como resultado de seus ferimentos. Sem dúvida ele se esforça, mas tudo o que ele consegue fazer é parecer Sacha Baron Cohen fazendo um personagem dramático, sem que o ator realmente desapareça para que seu Robert desabroche. Diria que o mesmo acontece como Kodi Smit-McPhee, ainda que com menos veemência, já que o roteiro não lhe dá tanto assim para fazer, pelo que ele acaba ficando limitado a um jovem problemático que caminha a passos largos para a tragédia.
Disclaimer poderia ter sido um filme espetacular, pois, com uma natural limitação temporal, Cuarón seria obrigado a manter o foco, sem se perder em repetições desgastantes que só parecem existir para ele exercitar sua inegavelmente afiada capacidade como diretor. Haveria espaço para a fotografia e som fisgarem o espectador, mas haveria, também, mais urgência, mais força em uma história que ganha um derradeiro capítulo de grande qualidade, mas que não redime por completo o que veio antes. Com isso, ganhamos uma minissérie visual e sonoramente linda, irretocável mesmo, mas que, quando olhamos para logo abaixo de verniz lustroso, não encontramos muita coisa.
Disclaimer (Idem – EUA/Austrália/México, de 11 de outubro a 08 de novembro de 2024)
Desenvolvimento: Alfonso Cuarón (baseado em romance de Renée Knight)
Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón
Elenco: Cate Blanchett, Leila George, Kevin Kline, Sacha Baron Cohen, Adam El Hagar, Lesley Manville, Louis Partridge, Indira Varma, Kodi Smit-McPhee, Art Malik, Liv Hill, Christiane Amanpour, HoYeon Jung, Michael Spicer, Gemma Jones, Youssef Kerkour
Duração: 343 min. (sete episódios)