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Crítica | Baixio das Bestas

Noites no sertão.

por Fernando JG
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Zona da Mata pernambucana, interior do Estado. A silenciosa Maria Auxiliadora (Mariah Teixeira) vive no seu martírio diário um sofrimento infinito. Quando é noite, seu avô Heitor (Fernando Teixeira) a leva pelo braço ao posto de caminhoneiros para que seja abusada em troca de algum dinheiro. Na sua plena adolescência, Auxiliadora tenta vagamente viver sua idade e seus sonhos, mas é sempre atravessada por um patriarcado atroz que a reduz à condição de nada, num mundo de brutos homens. 

Parece-me que a violência se mostra com muito mais força, crueza e naturalidade no cinema em que se privilegia o sertão nordestino. Pelo óbvio. É o local onde as relações sociais são sempre regidas por um patriarcado sufocante e onde o mandonismo tem força de lei. É violência na rua e na casa. Onde o Estado não tem voz e a domesticidade se faz inferno. É bem essa a tônica de Baixio das Bestas, dirigido por Cláudio Assis que co-roteiriza a película junto de Hilton Lacerda. Sabe-se que o cineasta, que tem no currículo obras como Amarelo Manga e Febre do Rato, incomoda justamente por explorar um determinado instinto feroz do humano em seus personagens, como se desnudasse as verdades por trás da cortina, e aqui não é diferente.

Baixio das Bestas não se difere de outros experimentos fílmicos. O nome é já sugestivo: “baixio”: lugar distante, baixo, profundo. Neste lugar vivem as bestas, a gente violenta, violada, inculta, vivendo próximo a um estado primitivo onde prazer e morte estão sempre lado a lado como paixões indomadas de um humano que é ainda muito cru e cruel. Baixio das Bestas é nome simbólico dado ao lugar de gente simples, relegada à própria sorte, como elabora Riobaldo no Grande Sertão: Veredas: “sertão é o vazio, é o sem lugar”. Esse é o palco natural em que se desenrola a trama fílmica. 

A obra mistura drama social e horror na medida certa. A noite é uma constante no longa-metragem e também é o lugar onde as piores coisas acontecem. A noite é o lugar do sinistro, do fantasmagórico, do desconhecido. A atmosfera manipulada pelo cineasta ao cair da escuridão traz uma sensação de desconforto e desespero, uma vez que a própria mise-en-scène se situa num espaço quase desértico, onde a qualquer hora tudo pode acontecer. E acontece. O horror e o demoníaco, no entanto, é familiar. Essa figura estranha que emerge todas as noites está dentro de casa, deitada ao lado da cama de Maria Auxiliadora, isto é, seu próprio avô. É justificável, tendo em vista as ações passadas pela protagonista, que sua voz seja apenas silêncio e obediência, relembrando seu status de objeto.

O segundo arco dramático que corre paralelamente ao principal funciona bem como um desenvolvimento da fábula. O núcleo formado por Cícero (Caio Blat), Everaldo (Matheus Nachtergaele), Bela (Dira Paes), entre outras prostitutas que vivem nesse deserto, cristaliza sua mensagem tanto isoladamente, quanto em conjunto à história de Maria Auxiliadora. São interligados pela figura da protagonista e mesmo que as interações entre os arcos sejam escassas, eles se interligam em momentos fundamentais, evidenciando e aprofundando o problema que propõe o cineasta. Esta outra face de um patriarcado em estado cru é vista com muito mais violência do que no arco de Maria Auxiliadora, o que complementa a ideia fílmica de Baixio das Bestas, tanto no aspecto simbólico do nome, quanto na ideia de filme. Aliás, antes que continue, há a participação singela de Marcélia Cartaxo, no papel de Ciça, o que é sempre excelente surpresa. 

Embora realista no seu fundamento mais original, afinal, por natureza a arte produzida no Nordeste tem adotado, por razões históricas, um tom de realismo, o filme brinca com a sua função ficcional. A fala de Everaldo: “Sabe o que é o melhor do cinema? É que no cinema tu pode fazer o que tu quiser” expõe uma visão irônica que é puramente do cineasta. É ele quem fala aqui, nos lembrando que, embora realismo, cinema é invenção, ficção. Isto é, o absurdo só pode ser aceitável no cinema, é o lugar para isso. Cláudio Assis quebra a quarta parede para ironizar o laço entre realidade e ficção.

Em Baixio das Bestas todos são bestas. Lá, o cineasta acompanha a brutalidade do mundo desgovernado dos homens, onde Deus não existe e onde a individualidade é reduzida ao pó. No escuro, esse mundo sem esperança revela as bestas que o habitam em busca de carne fresca, nova e jovem. Todos são vítimas, os que não são caçados pelo homem, são predados pelo inexorável processo social que os condiciona a serem o que são. 

Baixio das Bestas (Brasil, 2006)
Direção: Cláudio Assis
Roteiro: Cláudio Assis, Hilton Lacerda
Elenco: Caio Blat, Mariah Teixeira, Matheus Nachtergaele, Dira Paes, Marcélia Cartaxo, Hermila Guedes, Conceição Camarotti, João Ferreira, Irandhir Santos, China, Samuel Vieira, Jones Melo
Duração: 80 min.

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