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Crítica | Arca de Noé (2024)

A arca de ontem se choca com a arca de hoje.

por Luiz Santiago
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Arca de Noé (2024) ostenta a tag de “maior animação brasileira“, fundamentada no generoso orçamento, na ambiciosa distribuição internacional e no elenco de peso que a acompanha. Fruto de uma colaboração entre Brasil e Índia, a película busca na poesia atemporal de Vinicius de Moraes a sua bússola temática. Ao centro, acompanhamos os pequenos heróis Tom (Marcelo Adnet) e Vini (Rodrigo Santoro), dois ratinhos que, ao enfrentar os desafios de uma arca à deriva em pleno dilúvio, nos guiam por uma narrativa de canções e conflitos de sobrevivência. É uma sinfonia visual, onde cada cena reverbera o lirismo e a simplicidade de poemas infantis que todos conhecem, apesar dos problemas narrativos e de direção que encontramos no meio do caminho.

O filme nos traz um visual vibrante, com muitas cores, diversidade de cenários e animais, compondo a atmosfera que encantará o público já nas sequências iniciais, quando ainda exploramos o mundo exterior antes dos animais buscarem refúgio na construção de Noé. À medida que a narrativa avança, o espaço se torna limitado, mas não menos inventivo, permitindo que a direção explore nuances visuais e emocionais no confinamento que une todos os personagens, tornando-se palco de uma disputa de poder (ou seja, quem controlaria os melhores lugares da arca e, claro, a distribuição de alimento), além de uma disputa de talento artístico.

Aproveitando-se das inovações tecnológicas proporcionadas pela parceria com a produção indiana, Sérgio Machado e Alois Di Leo entregam uma experiência estética que chama a atenção, afastando o recorrente risco de apagamento frente ao padrão de qualidade visual das animações estrangeiras. A narrativa ganha intensidade não apenas pelo enredo, mas também pela trilha sonora, inspirada nos clássicos álbuns Arca de Noé (1980 e 1981), cujas canções, consagradas entre adultos e crianças, injetam vigor na fábula, tornando-a ainda mais dançante e, em alguns momentos, ‘fofa’. Além disso, o elenco de estrelas nacionais (da dramaturgia, do humor e da música) confere uma vivacidade memorável aos personagens, amplificando o encanto e o carisma da fita.

Contudo, embora grandiosa, essa embarcação narrativa apresenta rachaduras notáveis. A mais evidente delas é a decisão arriscada do roteiro, assinado por Sérgio Machado, de reinterpretar a narrativa bíblica à luz de temas contemporâneos, o que nem de longe é o verdadeiro intento do filme. Essa atualização inclui questionamentos éticos e morais sobre o próprio dilúvio, críticas à exclusão de famílias não heteronormativas, além de uma inserção constante de gírias e humor característico da geração atual. Esses elementos, ao invés de enriquecerem a trama, acabam por criar uma dissonância que enfraquece a fluidez narrativa, tornando o diálogo entre passado e presente menos orgânico e mais forçado (incorporado principalmente por Menininha, a personagem de Rihanna Barbosa), comprometendo a harmonia do projeto e caindo na armadilha de evocar assuntos polêmicos apenas por efeito de presença, sem compromisso real com a reflexão sobre eles.

Transitando de forma instável entre a leveza de um musical infantil e a seriedade de temas potencialmente profundos, Arca de Noé peca pela falta de coesão com o tema, e trai a proposta original, querendo o tempo inteiro parecer muito moderno. Um exemplo claro dessa hesitação é o arco dramático do leão Baruk (Lázaro Ramos), cuja trajetória de dominação adquire contornos de intensidade incomuns para uma animação deste tipo; no entanto, o impacto desse conflito é reduzido por reviravoltas bobinhas e uma abordagem cômica final que destoa do que se construiu anteriormente na trajetória do personagem. 

Deixando o espectador em um mar de incertezas e revelando uma trama incerta do que realmente quer transmitir, Arca de Noé termina de forma quase amarga. A intenção é ótima, a dublagem, as músicas e a estética do desenho são boas, mas o diretor faz uma abordagem equivocada para o tema, forçando uma “atualização” que não assume o risco dos novos pensamentos e nem deixa que a essência do original esteja plena, construindo um musical animado à altura da genialidade e delicadeza da obra de Vinicius de Moraes. Para as crianças, talvez funcione mais, pelo encanto que consegue trazer — especialmente durante o concurso musical na arca, o melhor momento do filme. Mas reina a impressão de que poderia ter abraçado com coragem tanto o lirismo da fonte, quanto as reflexões contemporâneas que resolveu inserir no projeto.

Arca de Noé (Brasil, Índia, 2024)
Direção: Sérgio Machado, Alois Di Leo
Roteiro: Sérgio Machado
Elenco (vozes): Rodrigo Santoro, Marcelo Adnet, Alice Braga, Lázaro Ramos, Gregorio Duvivier, Julio Andrade, Bruno Gagliasso, Giovanna Ewbank, Eduardo Sterblitch, Ingrid Guimarães, Heloisa Périssé, Marcelo Serrado, Débora Nascimento, Monica Iozzi, Babu Santana, Seu Jorge, Chico César, Russo Passapusso, Larissa Luz, Rihana, Edvana Carvalho, Laila Garin, Louise D’Tuani, Guilherme Rodio, Leandro Firmino, Daniel Furlan, Luis Miranda, Adriana Calcanhoto, Céu, BaianaSystem
Duração: 101 min.

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