Home FilmesCríticas Crítica | Mário de Andrade, O Turista Aprendiz

Crítica | Mário de Andrade, O Turista Aprendiz

Os caminhos do Brasil.

por Luiz Santiago
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Mais um filme dentre as obras experimentais, desafiadoras ou de experiência rara no cinema brasileiro contemporâneo, Mário de Andrade – O Turista Aprendiz é inspirado no diário de viagem do autor de Macunaíma pelo Amazonas, em 1927; anotações que só foram publicadas em 1976, após a morte do autor. Sob direção e roteiro de Murilo Salles, o filme é fruto de um cruzamento de diferentes gêneros e estilos de contar histórias, como documentário, ficção e ensaio, por exemplo; às vezes servindo de cinebiografia ou exposição diferenciada das aventuras do artista pelo norte do Brasil; às vezes servindo de crítica paralela a todas as coisas que exibe — um criativo diálogo interno que torna a produção absolutamente encantadora. 

Para o diretor, o maior desafio em O Turista Aprendiz era trazer as páginas de anotações de Mário de Andrade para as telas sem fazer com que as descrições do cotidiano, as linhas humorísticas e as observações ácidas sobre pessoas, vestimentas e comportamentos durante a viagem saturassem o espectador já no primeiro ato. Esse conteúdo original, portanto, foi dividido em dois caminhos: parte dramatizado e parte narrado pelo elenco, principalmente por Rodrigo Mercadante, que faz um trabalho esplendoroso como Mário de Andrade. Quando essas linhas ganham vida, é que vemos expostas muitas contradições e complexidades do protagonista e do próprio Brasil da época, dando profundidade ao pensador e ao seu objeto de estudo. 

A forma, aqui, poderá incomodar espectadores que não conseguem se afastar do realismo. Murilo Salles cria uma variação de tablados dramatúrgicos excelentes, utilizando cenários minimalistas, projeções no estilo “colagem audiovisual” (sobreposições de fotos, filmes, pinturas e material de imprensa) e uso evidente de fundo verde, ancorando o aspecto teatral da película e fazendo com que a variedade imagética somada às possibilidades e percepção da realidade aludissem às ideias de vanguarda tão caras ao homenageado. Fixada essas particularidades da forma, o filme desenvolve um conteúdo que é crítico nas esferas sociais e políticas, apontando os resquícios do legado colonial português, a disparidade entre a aristocracia latifundiária e o trabalhador comum brasileiro, e também a constante busca nacional por um herói unânime e por definições mais precisas de sua própria identidade.

Os vícios e as virtudes, os anseios e as contradições, a sexualidade, as ideias e o comportamento tido como “exagerado e estranho” do escritor são explorados sem parecerem estereótipos irritantes. Sua construção é humana, franca, digna de um grande artista, mas sem idealizações. Essa honestidade de exposição do protagonista tem um efeito muito interessante no público, que até pode torcer o nariz para a direção de arte, mas que se verá representado, em alguma medida, pelas idiossincrasias do turista aprendiz. Em torno dele, canções e melodias da época, excelentes figurinos, danças e julgamentos de convívio social complementam o discurso interno da obra, deixando claro o motivo das escolhas do diretor, e como todos esses ingredientes fazem parte de uma unidade fílmica experimental.

Mário de Andrade, O Turista Aprendiz é fruto de um genuíno cinema autoral, capaz de nos fazer viajar, mergulhar nos sentimentos e na atmosfera de um dos grandes ícones da nossa literatura; e então nos retirar do enlevo e nos jogar na realidade vergonhosa de um Brasil que ainda não sabe quem é; ainda não se curou das feridas da escravidão; ainda não se reconheceu como uma fera que se disfarça de cordial, nem como uma genial e rica nação que não consegue se soltar dos grilhões das etiquetas, das mentiras da propaganda e das ideias autoindulgentes dos menestréis, messias, mecenas e mestres que controlam o país de norte a sul… desde as Capitanias Hereditárias.

Mário de Andrade, O Turista Aprendiz (Brasil, 2024)
Direção: Murilo Salles
Roteiro: Murilo Salles
Elenco: Rodrigo Mercadante, Dora Freind, Dora de Assis, Lorena da Silva, Pedro Miguel
Duração: 93 min.

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