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Crítica | Memórias de Um Caracol

Gêmeos: fascinante semelhança.

por Luiz Santiago
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Quem se emocionou com a obra-prima Mary & Max – Uma Amizade Diferente (2009), estará aqui diante de um filme do mesmo diretor, com a mesma abordagem de comunicação entre duas pessoas sensíveis, separadas geograficamente, mas unidas emocionalmente por uma amizade indescritível. No caso de Memórias de Um Caracol (2024), esse laço é ainda mais forte e todo o drama acaba ganhando um peso maior do que o anterior, porque os protagonistas são irmãos gêmeos que precisam vencer, dentre outras grandes dificuldades da vida, uma distância geográfica que parece ainda maior do que realmente é. 

O cineasta Adam Elliot exibe aqui as suas criações de massinha superficialmente imperfeitas, sem o auxílio de tecnologias facilitadoras nem mesmo para a criação dos cenários secundários ao longo do filme. Isso torna Memórias de um Caracol uma animação mais contida, em termos de alteração de espaços e movimentação dos personagens pelos ambientes, adicionando um quê de claustrofobia à lista de sensações que o longa traz. O trabalho de stop motion é impressionante, com os movimentos típicos dos personagens nesse modelo de animação e com o impacto e a rústica beleza estética que o material tem, mostrando a vida de Grace (Sarah Snook) e Gilbert (Kodi Smit-McPhee) desde a infância, a partir de um relato que a narradora faz, como um desabafo biográfico, para sua caracol Sylvia, a última de suas amigas. 

Este não é o convencional filme fofinho que normalmente procuramos para ver quando precisamos aquecer o coração e ter contato com um universo cheio de beleza e sutileza. A beleza aqui é aplicada ao conceito artístico, mas seu significado é massacrante inclusive na abordagem estética, com forte uso de tons terrosos, profusão de cenas em espaços fechados e construção de personagens que mais parecem ter saído de um terror dirigido por Federico Fellini. Alguns toques cômicos se misturam às muitas idiossincrasias, vícios e abusos de pessoas, afetando a vida dos protagonistas e moldando personalidades, criando gatilhos e traumas. Os gêmeos possuem personalidades completamente diferentes, recebem uma base de animação pensada com precisão para cada um, e acabam tendo uma existência completamente diferente, tentando fazer da saudade e da solidão uma escada para a superação e o sonho do reencontro.

Apesar das muitas misérias e tristezas que o enredo aborda, Memórias de um Caracol não é desesperançado, pessimista ou derrotista. As vidas e as relações humanas na obra abrem espaço para pequenas flores inesperadas, como as amizades sinceras que dão suporte aos gêmeos e os ajudam em cada uma de suas fases de superação. O foco maior da fita, contudo, é a amizade entre Grace e Pinky (Jacki Weaver), um laço tão poderoso, tão plural e exposto com tanto sentimento, que em diferentes partes do filme trará lágrimas aos olhos do espectador. É através dessa amizade que a película ergue o discurso de esperança, de vitória sobre os demônios internos e externos, e de persistência na criação de uma vida melhor para si e para as pessoas em volta. O fato de ser um filme narrado e de todo o esforço da obra ser mapear a qualidade e os impactos dos encontros e desencontros, torna a jornada muito próxima do público, numa identificação que relembra a de Mary & Max, mas dentro de outros cenários físicos e psicológicos. 

A complexidade do mundo e a tentativa de encontrar um propósito formam o chão temático de Memórias de um Caracol. As manias, as compensações e as decepções não são vistas apenas como males inevitáveis e superáveis, mas como resultado de um processo familiar, social, temporal e histórico, algo muito mais enredado do que as definições de “destino” e “herança cármica” que muitos tentam utilizar para explicar as origens do sofrimento humano. A animação abrange um processo de pensamento que está acima da história dos gêmeos, da vida sofrida e da felicidade do encontro que termina por fechar o ciclo de Grace e Gilbert. Estar vivo é estar sujeito a dissabores que não podemos controlar, porque viver, como disse Guimarães Rosa, é muito perigoso. O adestramento e o escape desse perigo é que gerará as inestimáveis bolhas de felicidade nas quais entramos temporariamente, deixando de fora a angústia, a ansiedade e a vontade de morrer, fortalecendo o espírito, o corpo e a mente para a formação de mais um muro, de mais uma casca, de mais uma armadura para uma próxima fase. Um cerco ao entendimento das impermanências da vida que, só assim, conseguimos ver “de fora” e apreciar sua real beleza.  

Memórias de Um Caracol (Memoir of a Snail) — Austrália, 2024
Direção: Adam Elliot
Roteiro: Adam Elliot
Elenco (vozes): Sarah Snook, Kodi Smit-McPhee, Eric Bana, Magda Szubanski, Dominique Pinon, Nick Cave, Jacki Weaver
Duração: 94 min.

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