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Crítica | Enterre Seus Mortos (2024)

Uma distopia vazia.

por Ritter Fan
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Adaptação do romance homônimo de Ana Paula Maia, Enterre Seus Mortos lida com um estranho Brasil distópico em que há constantes chuvas de granito (não granizo) e fronteiras entre regiões fortemente guardadas, com Edgar Wilson (Selton Mello) vivendo um funcionário do O.R.A.M., sigla de Órgão de Recolhimento de Animais Mortos da cidade fictícia de Abalurdes, em que ele diariamente faz justamente isso, recolhe carcaças de animais mortos em estradas, uma ocorrência aparentemente bem mais constante do que o normal neste universo. Ao seu lado há Mateo (Danilo Grangheia) , um padre excomungado que distribui extrema-unções a qualquer um que precisa, normalmente vítimas de acidentes nas mesmas estradas.

Com uma sequência inicial potente em que vemos um cavalo que atravessou o para-brisas de um carro depois que seu motorista, dirigindo rápido, acertou uma carroça, a dinâmica dessa distopia é logo estabelecida: Edgar Wilson só está preocupado com o animal, pois o humano pedindo ajuda para sair do carro não é sua jurisdição, mas sim a de uma ambulância que ele sabe estar quebrada. Trata-se de uma alegoria para a burocracia insensível às humanidade, uma estrutura hierarquizada estanque que não vai além do que está determinado em sua descrição profissional. O famoso “o problema não é meu” que é, talvez, o ponto nodal da disfunção de nossa sociedade.

No entanto, o poder visual e narrativo dessa sequência inicial é uma anomalia em Enterre Seus Mortos, pois nada que segue a esse momento chega próximo de construir críticas semelhantes ou de estabelecer impulsos narrativos para justificar sua duração consideravelmente avantajada. É quase como se o diretor e roteirista Marco Dutra tivesse imaginado esse sequência e criado o restante do filme para justificar sua existência, falhando no processo.

Não que não haja mais nada que se aproveite no longa, pois com certeza há, começando pela performance da veteraníssima Betty Faria como Helena, tia de Nete (Marjorie Estiano), namorada e chefe do protagonista. A atriz, infelizmente pouco aproveitada na história, incorpora uma seguidora cega de uma estranha religião que surgiu e que faz de tudo para converter mais gente, como é o padrão de religiões organizadas, com Nete, claro, sendo o próximo alvo para desgosto de Edgar. Mas o comentário a ser feito sobre as religiões em si fica na superfície, assim como o desenvolvimento – ou a ausência dele – da premissa do atropelo da humanidade por uma ineficiente máquina burocrática.

Não ajuda também que a distopia em questão, nunca explicada e nem há necessidade disso, não carrega características próprias para além das que mencionei aqui. A direção de arte não se esmera em detalhes, mantendo a impressão de que estamos em um mundo normal apenas com pequenas diferenças. Ainda que haja lógica nessa escolha, tenho para mim que faltaram esforços para envelopar o espectador no mundo que é construído, com a produção preferindo seguir um caminho simplificado demais para realmente funcionar.

Selton Mello, com sua eterna dificuldade de falar para fora, não parece ter material suficiente para fazer mais do que um personagem monocórdio resmungão que não carrega a narrativa. Aliás, bem ao contrário, mesmo considerando as revelações que seguem sobre seu personagem, o que ele faz mesmo é manter o filme rodando em falso, em uma eterna repetição de temas que não ganham profundidade.

Enterre Seus Mortos tenta ser uma alegoria carregada de críticas socioeconômicas, mas o longa, mesmo por vezes parecendo ambicioso, acaba sendo acanhado demais, com um roteiro que não sabe desenvolver suas várias linhas narrativas. Trata-se de uma distopia que infelizmente se esvazia depois de prender o espectador com seus fortes momentos iniciais.

Enterre Seus Mortos (Brasil, 2024)
Direção: Marco Dutra
Roteiro: Marco Dutra (baseado em romance de Ana Paula Maia)
Elenco: Selton Mello, Marjorie Estiano, Danilo Grangheia, Betty Faria, Maria Manoella, Chao Chen, Vittória Seixas, Magali Biff, Carlos Francisco, Gustavo Coelho, Everson Anderson, Ricardo Gelli, Gilda Nomacce, Majeca Angelucci, Clarissa Kiste, Ana Abbott, Sílvio Restiffe
Duração: 129 min.

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