Emilia Pérez é um daqueles filmes únicos, corajosos, surpreendentes e hipnotizantes que só aparecem muito de vez em quando na Sétima Arte, especialmente nos dias atuais de muito volume e qualidade mediana. Diria até mesmo que a produção franco-belga comandada por Jacques Audiard em seu primeiro longa em espanhol que, em Cannes, levou tanto o Prêmio do Júri como a Palma de Ouro de Melhor Atriz pelo conjunto das quatro atrizes centrais, é uma joia tão rara que o espectador se beneficiaria mais se não procurasse saber nada, nem mesmo a sinopse, sobre ela para além do que escrevo neste parágrafo inicial. Não é que o desconhecimento sobre o filme seja condição para apreciá-lo, pois isso seria estupidez de minha parte, mas tenho para mim que obras como essa que se enquadram tão redondamente no conceito indefinível de Magia do Cinema, ganham uma camadinha extra de deslumbramento quando o espectador simplesmente mergulha nela na mais completa ignorância.
Mas, se o leitor decidir continuar a leitura da presente crítica, ela será totalmente sem spoilers, ainda que eu inevitavelmente tenha que usar o conteúdo das sinopses oficialmente divulgadas por aí para construir meus comentários e evitar uma abordagem excessivamente críptica. Portanto, a leitura de meu texto é segura a não ser que seja desejo do leitor acatar a sugestão de meu primeiro parágrafo, mesmo reconhecendo que, no mundo exacerbadamente conectado de hoje em dia e particularmente cansativo e frustrante no que diz respeito à revelação de antemão de todos os detalhes de produções audiovisuais, essa tarefa de manter-se ignorante sobre um filme seja muito mais difícil do que deveria ser.
Inspirado bem de longe pelo romance Écoute, de Boris Razon, que o próprio Audiard adaptou na forma de um libreto de ópera e, depois, transformou em roteiro cinematográfico ao lado de Thomas Bidegain, Nicolas Livecchi e Léa Mysius, Emilia Pérez mistura gêneros de duas maneiras, ou seja, tanto em termos de estrutura narrativa quanto de conteúdo, trabalhando um thriller de crime como um inusitado musical que, apesar de não ser comédia como alguns definem por aí, extrai humor do absoluto inusitado que é sua premissa. Nela, Juan “Manitas” Del Monte, o asqueroso chefão do maior cartel de narcotráfico do México, faz uma oferta irrecusável à Rita Mora Castro, uma brilhante, mas subestimada advogada para que ela o ajude, usando tanto meios legais quanto ilegais, a conseguir aquilo que ele sempre quis na vida: tornar-se fisicamente a mulher que ele sempre foi, mas que também sempre precisou esconder por razões óbvias, e, ato contínuo, mudar de nome e desaparecer no mundo.
Quando Rita, vivida por Zoe Saldaña esbanjando tanto sua habilidade de dançarina em razão do treinamento formal que recebeu quando jovem e um espanhol de qualidade em razão de seus pais e pelo fato de ter vivido na República Dominica com sua mãe quando criança, recebe essa proposta, a natureza de musical do longa já está definida, com ela inaugurando essa “pegada surpresa” quando, saindo vitoriosa mas sem reconhecimento de um julgamento em que precisava conseguir a absolvição de um criminoso pelo assassinato de sua esposa, ela começa a cantar suas mágoas em uma transição absolutamente brilhante da direção de Audiard. Mesmo assim, nada prepara o espectador para a proposta em si, que vem logo em seguida em um caminhão escuro que é o quartel-general móvel de Manitas, um homem corpulento, de voz espessa, todo tatuado, com barba desgrenhada e dentes prateados que é vivido assustadoramente bem por Karla Sofía Gascón, atriz espanhola abertamente trans que, para essa parte do longa, teve que passar por um muito convincente “processo de reversão” graças ao extenso uso de maquiagem e iluminação limitada, mas perfeitamente lógica dadas as circunstâncias, por parte do diretor de fotografia Paul Guilhaume.
A partir daí, Rita parte pelo mundo para não só entender como o processo pode ser feito, como em quanto tempo, com quantas operações e, claro, o tamanho do investimento, ao mesmo tempo em que estabelece planos para fazer com que Manitas desapareça, para obter uma nova identidade – a de Emilia Pérez, logicamente – para ele e para realocar Jessi (Selena Gomez), esposa do narcotraficante, e seus dois filhos, para a Suíça, mantendo-os na ignorância do que ocorreu, mas com todo o conforto a que sempre estiveram acostumados. E tudo isso é, somente, a primeira parte do longa, que vai muito além disso, mas que não abordarei aqui para evitar spoilers, sendo apenas importante salientar que uma quarta personagem feminina, Epifanía, vivida por Adriana Paz, é introduzida mais para a frente, já que a atriz merecidamente faz parte da quadra premiada em Cannes.
Além de abordar a transição de gênero de maneira aberta, direta, sem rodeios e trabalhando o preconceito inerente como parte da infraestrutura fílmica e não como algo solto, existente somente para dar lições de moral, o roteiro de Audiard usa as canções e os números musicais de maneira inteligente, também como alicerces narrativos que efetivamente impulsionam a trama e que respeitam as limitações de cada atriz (diferente de um certo musical lá, lá em Los Angeles). E as canções, normalmente de gêneros que eu desgosto, são cativantes, cantadas – por vezes quase faladas como acontece com Manitas – da maneira mais natural possível, o que torna as transições no estilo “começa a cantar do nada” que eu sei que muita gente não gosta, mas que eu adoro, bem mais fáceis e lógicas. Os próprios números musicais em si são consideravelmente discretos, sem arroubos explosivos, mas sempre com coreografias de primeiro nível criadas por Damien Jalet que se esforça em não permitir que os passos de dança traiam a premissa do longa, algo que Audiard é também muito cuidadoso em manter na execução, ao ponto de ter confinado os números aos cenários criados em estúdio em Paris, já que nada foi feito em locação no México, por mais incrível que possa parecer.
As quatro atrizes centrais revelam-se como escalações perfeitas para a proposta audiovisual. Confesso que jamais esperaria ver Zoe Saldaña em um musical e nunca achei a atriz particularmente talentosa, ainda que muito carismática. Mas, em Emilia Pérez, ela não só convence como uma advogada brilhante de olhos sulcados e cheios de olheiras que, na medida em que a trama engrossa, desenvolve-se a olhos vistos, como, também, como cantora e dançarina, em uma performance arrebatadora. Selena Gomez, mesmo não tendo o mesmo domínio do espanhol que Saldaña, parece continuar seu processo de reencontro com o audiovisual iniciado de maneira mais contundente por seu continuado e merecido sucesso em Only Murders in the Building, desta vez encontrando uma obra que conversa também com seu lado musical e oferece um desafio maior que ela encara de frente e com surpreendente naturalidade. Adriana Paz, por seu turno, tem o destaque internacional que ninguém sabia que ela merecia ter em Emilia Pérez, em um papel decididamente menor, até porque sua personagem é introduzida no terço final e, portanto, tem pouco tempo para efetivamente ganhar desenvolvimento, mas não menos importante como uma esposa que perde o marido para o narcotráfico e acaba sendo vital para o recrudescimento dramático do longa.
Deixei Karla Sofía Gascón propositalmente por último, pois a atriz mostra uma coragem de se tirar o chapéu ao deixar-se “reverter” à uma figura masculina, algo que não me lembro ter sido feito antes (o mais próximo foi em Orange is the New Black, mas, lá, a versão pré-transição de Sophia Burset foi vivida por M Lamar, irmão gêmeo de Laverne Cox), não com tanta proeminência pelo menos. E o melhor é que ela muito claramente se dedicou na composição de Manitas, criando um personagem que, mesmo aparecendo pouco, é inesquecível com sua presença imponente e voz ameaçadora e seus momentos de rap. Mas é Gascón como Emilia Pérez, claro, que brilha do momento em que aparece pela primeira vez até o final do longa, pois a personagem não só é muito interessante por sua própria natureza – um estereotípico chefe do tráfico do sexo masculino que se torna uma atraente mulher -, mas também e especialmente pela maneira como a atriz consegue fundir as “duas personalidades”. Se fisicamente ela é completamente uma mulher, psicologicamente Pérez carrega décadas de dor e violência em seu âmago e isso transparece com constância, seja em sussurros, seja em gestos mais amplos e até na flutuação da inflexão de voz. Diferente do que poderíamos imaginar, Audiard não quer que Pérez deixe completamente de ser Manitas e Gascón não só compreende essa necessidade, como faz um esforço hercúleo e muito bem-sucedido para encarnar essa dicotomia.
Emilia Pérez é, portanto, uma experiência audiovisual inesquecível do começo ao fim que funciona sem engasgues como thriller de crime, como musical, como drama, como crítica social, como aprendizado e como plataforma para quatro atrizes se reinventarem. Jacques Audiard criou algo único e que renova aquela sensação de que o Cinema é para ser, no fundo, um instrumento disruptivo, tão destruidor quanto criador e que existe, acima de tudo, para fascinar.
Emilia Pérez (Idem – França/Bélgica, 2024)
Direção: Jacques Audiard
Roteiro: Jacques Audiard, com colaboração de Thomas Bidegain, Nicolas Livecchi e Léa Mysius (baseado em romance de Boris Razon)
Elenco: Zoe Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez, Adriana Paz, Mark Ivanir, Édgar Ramírez, James Gerard, Agathe Bokja, Lucas Varoclier, Marie-Elisabeth Robert, Eric Geynes, Anabel Lopez, Eduardo Aladro, Line Phé, Cyrus Khodaveisi, Yohan Levy, Daniel Velasco-Acosta, Jonas Paz-Benavides
Duração: 130 min.