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Crítica | The Seed of the Sacred Fig

Denúncia e paranoia na teocracia iraniana.

por Ritter Fan
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The Seed of the Sacred Figpode ser classificado como filme de guerrilha, pois seu diretor e roteirista, o cineasta iraniano Mohammad Rasoulof, não só já fora preso algumas vezes por desafiar o regime ditatorial teocrático de seu país, como precisou esconder as filmagens, trabalhando em espaços confinados ou no interior do Irã, de forma a burlar a censura desenfreada e violenta que artistas sofrem por lá. Isso acaba explicando algumas escolhas e caminhos narrativos de seu longa mais recente que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2024, que o diretor compareceu depois de fugir das autoridades de seu país, ganhando um prêmio especial dos jurados e tornando-se, por ser coprodução, o indicado da Alemanha para concorrer a uma indicação de Melhor Filme Internacional no Oscar.

Usando a natureza da semente da árvore do título como premissa, já que ela germina “estrangulando” a vegetação anfitriã, Rasoulof constrói uma narrativa pesada com caráter de forte denúncia do regime totalitário de seu país que abafa protestos violentamente e manipula o fluxo de informações para minimizar o que aconteceu de verdade. Mais especificamente, o diretor intercala filmagens reais de telefones e outras fontes das agitações e protestos civis por todo o país em 2022 e 2023 depois da morte da jovem Mahsa Amini sob custódia policial, para dar voz ao seu próprio protesto que ele transporta para um ambiente familiar em que o patriarca, Iman (Missagh Zareh), acabou de ser promovido a juiz investigador do Tribunal Revolucionário de Teerã, podendo prover melhores condições para sua esposa Najmeh (Soheila Golestani) e suas duas filhas Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki).

No entanto, como essa promoção coincide justamente com o período dos protestos e das incontáveis prisões que resultaram daí, seu trabalho aumenta dramaticamente, o que pesa física e psicologicamente em Iman, que passa a ficar mais distante e mais paranoico enquanto suas filhas lidam com os eventos ao seu redor da melhor maneira que podem, o que inclui ajudar uma amiga agredida na escola durante uma invasão policial e Najmeh faz de tudo para manter esses “mundos” separados. Quando a pistola que Iman recebeu como parte de seu novo trabalho desaparece, porém, o ambiente familiar começa a desintegrar-se, com acusações inclementes que levam até mesmo à uma sequência de interrogatório silencioso que é aterrorizante por sua enganosa simplicidade.

A manutenção das câmeras tanto quanto possível no apartamento da família protagonista é, claramente, parte da estratégia de Rasoulof de manter as filmagens escondidas dos órgãos censores para proteger elenco e equipe e para tornar possível a finalização de sua obra, mas o resultado disso é a intensificação da claustrofobia, da tensão e daquela incômoda impressão de que não há saída para a situação em que especialmente as mulheres da família se encontram. A atuação de Soheila Golestani é, talvez, o melhor exemplo dessa dinâmica, já que a atriz mostra apenas com seu semblante e mesmo quando sua personagem diz algo em contrário, que ela tem perfeita consciência do que está ocorrendo e tudo o que ela deseja é que a tempestade passe sem que suas filhas sejam atingidas por raios, algo que o sumiço da arma torna impossível e que leva a uma espiral de acusações sem fim.

Tudo no filme funciona muito bem, do elenco à direção de fotografia naturalista, passando pelo delicado trabalho de maquiagem, mas seu terço final, algo como os últimos 40 minutos em que a ação é deslocada para o interior do Irã em um casa vazia da família de Iman cercada de deserto e vegetal florestal, algo também claramente ditado pela necessidade de se manter clandestinas as filmagens, faz a obra desandar. Nessa nova ambientação, Rasoulof pretendia criar uma confrontação familiar franca liderada por um Iman completamente desequilibrado pela perda de reputação iminente – e prisão – em razão do desaparecimento da arma que lhe fora confiada e pela desconfiança que isso gerou no seio de sua família, mas o que acaba acontecendo é uma sucessão de longas sequências que pouco agregam à trama e que por vezes parecem cambar para o lado do horror, mas sem realmente mergulhar nessa possível proposta. Além disso, duas personagens são quase que completamente apagadas e uma terceira ganha relevância súbita em momentos repletos de ação que, muito sinceramente, simplesmente não combinam nem com a caracterização original da personagem e nem com o filme em si.

É visível o que Rasoulof tentou fazer e ele merece todos os méritos por ter a coragem de fazer a denúncia que faz, mas a potência que The Seed of the Sacred Fig mostrou ter em seus dois terços iniciais é sabotada por um  ato final que deixa o espectador coçando a cabeça incrédulo pelas escolhas do cineasta. De forma alguma o filme perde o valor em razão disso, mas, em termos de narrativa, ele se torna tão diferente do que vinha sendo, que o cineasta arriscou demais que a natureza de denúncia de sua obra acabasse soterrada sob o desvio tonal que ele acaba promovendo.

* Não há título oficial em português ainda, mas a tradução direta, sem usar o nome oficial da árvore em questão, que é Ficus Religiosa ou Figueira-dos-Pagodes e até Pimpol, seria A Semente da Figueira Sagrada.

The Seed of the Sacred Fig (Dāne-ye anjīr-e ma’ābed – Irã/França/Alemanha – 2024)
Direção: Mohammad Rasoulof
Roteiro: Mohammad Rasoulof
Elenco: Soheila Golestani, Missagh Zareh, Mahsa Rostami, Setareh Maleki, Niousha Akhshi, Amineh Mazrouie Arani, Reza Akhlaghirad, Shiva Ordooie
Duração: 168 min.

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