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Crítica | Frankenstein (1931): Versão Comentada por Rudy Behlmer

Uma versão comentada pelo historiador de cinema Rudy Behlmer que acentua peculiaridades contextuais do clássico filme de monstros da Universal.

por Leonardo Campos
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Honestamente, Frankenstein é um clássico e, consequentemente, objeto de culto, por seu legado e impacto cultural. Há, no entanto, problemas narrativos e uma fragilidade dramática absurda no desenvolvimento do roteiro. E, como no palavreado popular do contemporâneo, não posso “passar pano” para o filme só por causa da sua importância histórica. O enredo é baseado na peça homônima de Peggy Webling. O texto de Mary Shelley, por sinal, ganhou maior notoriedade depois que houve um interesse do teatro em levar sua história traduzida para os palcos. Dentre as mais notórias, temos “Presumption! Or the Fate of Frankenstein”, de 1832, assinada por R. B Peake, com o ator T. P. Cooke no papel do monstro. Mais adiante, em 1887, outra tradução foi levada para os palcos, dessa vez, no formato musical, com Richard Henry e Meyer Lutz, figuras sociais do campo das artes, proeminentes na época. Assim, não podemos afirmar que foi o teatro o terreno responsável por adubar o campo de germinação para o interesse no livro de Shelley, mas sem dúvidas, foi o que ajudou o criador e a criatura da história, a ganharem maior popularidade. Entender a pavimentação dessa caminhada é fundamental para melhor compreensão do impacto cultural de Frankenstein, posteriormente, na era da reprodutibilidade técnica, levada ao processo de exaustão pela Universal na década de 1930.

A versão em questão, comentada pelo crítico e historiador de cinema Rudy Behlmer, é basicamente a mesma disponibilizada pela Universal em mídias físicas e nos serviços de streaming. O cientista Henry Frankenstein (Colin Clive), obcecado pela ideia de poder oriunda de seus experimentos científicos, resolve criar vida artificialmente. O modo de operação que nos já conhecemos muito bem é o seguinte: o recolhimento de partes de cadáveres. Na junção e costura, ele pretende utilizar o seu maquinário de última geração, num flerte com o galvanismo, isto é, gerar uma ativação da figura em questão por meio de descargas elétricas. O uso, por sua vez, será oriundo de fontes da natureza: os raios. Para a profanação de covas, ele conta com a ajuda de seu assistente, o anão Fritz (Dwight Frye). Ao procurar por um cérebro, o cientista decide ir até Goldstadt, a faculdade de medicina onde estudou. Erroneamente, o órgão em questão retirado do espaço é de um criminoso. O plano era um que fosse, como no texto do filme deixa bem delineado, “normal”. Pronto. Tem-se ai a receita perfeita para o desastre total. A forma ganha vida e os problemas começam a transbordar.

O grande problema é que os tais problemas, elementos que em roteiro, chamamos de conflitos, são pouco suficientes para deixar o filme dramaticamente mais interessante. Frankenstein é um clássico? Sim, como já mencionado, mas isso não impede que em sua estrutura, não haja fissuras consideráveis. E importante: a análise aqui é diacrônica, caro leitor. Em momento algum há intenção de analisar uma história de quase cem anos, na mesma perspectiva de narrativas mais modernas. Quando nos debruçamos nesse exercício sem sincronia com o contexto, vários aspectos devem ser levados em consideração. Frankenstein não é um problema por conta de sua direção de fotografia, trilha sonora, design de produção e efeitos visuais. A produção é desastrosa na tradução do romance de Mary Shelley, ao enfraquecer demasiadamente o potencial do livro. Além disso, com algumas raras exceções, os personagens são planos, aparecem sem qualquer profundidade para que haja a devida catarse. James Whale, um diretor acima da média, consegue conduzir alguns bons momentos, mas a montagem também atrapalha.

Voltemos ao filme: além do cientista e do seu auxiliar, o enredo também nos apresenta alguns personagens secundários, preocupados com o estado psíquico de Henry. A sua noiva, Elizabeth (Mae Clarke), o seu melhor amigo Victor (John Boles) e o seu antigo professor, Dr. Waldman (Edward Van Sloan). Eles decidem procura-lo após um tempo sumido, tragado pelas forças de seu experimento, e, ao encontra-lo, percebem o quanto a figura ficcional verbaliza e expressa informações desencontradas, num aparente estado que comumente chamamos de loucura. Enquanto isso, a criatura gerada no laboratório que possui ecos estilísticos de Metrópolis, de Fritz Lang, narrativa expressionista que serviu de inspiração visual para o filme, é deixada numa espécie de masmorra, constantemente atormentada pelo assistente de Henry, um personagem igualmente desumanizado. Após alguns conflitos, o monstro interpretado por Boris Karloff é controlado, mas demonstra aos espectadores o seu estado de inércia diante de um mundo que desconhece. Exausto, o cientista segue para casa e deixa a criatura sob os cuidados do Dr. Waldman. O que ele não esperava eram os desdobramentos disso tudo.

Na ocasião do seu casamento com Elizabeth, Henry é informado de uma fatalidade: o seu monstro escapou, mas antes disso, assassinou o seu mentor. Agora, circundando pelas imediações, a sua criação irresponsável pavimenta um caminho de incompreensão, tanto de si, quanto dos outros, culminando na famosa cena de afogamento de uma menina e na consequente ira dos aldeões, unificados para exterminar o monstro que, tal como sabemos, é igualmente vítima de todo o processo. Entre a entrada e saída de personagens sem funções dramáticas devidamente delineadas, o filme segue para o seu final apoteótico e feliz, em um moinho. Lá, o monstro é acuado, a estrutura é incendiada e a paz parece reinar novamente na região, com o casal Henry e Elizabeth a gozar dos privilégios de uma vida tranquila. Diante do contexto histórico e da situação dos Estados Unidos numa era de incertezas, geradas pela recente Primeira Guerra Mundial e pela Crise de 1929, o desfecho escolhido para a trama era, na visão dos realizadores da Universal, o adequado para garantir a catarse seguida do alívio para os espectadores, indivíduos que já vivenciavam uma realidade assustadora do lado de cá da tela, desprovidos de capacidade psicológica pra se entreter com um final onde o suposto “mal” vence a saga.

Um ponto de articulação curioso é que na época de lançamento de Frankenstein, os alemães já tinham apresentado monstros em narrativas mais complexas. A trama orquestrada por James Whale, dentro das já mencionadas limitações do roteiro assinado Garrett Fort, Francis Edward Faragoh e Richard Schayer, baseados na peça de Webling, não teve aproximações dramáticas com as produções expressionistas, tais como Nosferatu e O Gabinete do Dr. Caligari, no entanto, a direção de arte de Charles D. Hall e a cenografia de Herman Rosse possuem variados traços estilísticos do movimento de nuances estéticas peculiares. A estética visual do Expressionismo Alemão no cinema surgiu como uma manifestação artística fundamental na década de 1920, marcada por um contexto histórico de grande tumulto, que incluiu a Primeira Guerra Mundial e suas consequências sociais e políticas, também reverberantes para os estadunidenses. Os filmes expressionistas, caracterizados por uma estética que enfatiza a emoção e a subjetividade, frequentemente utilizando ângulos de câmera distorcidos, iluminação dramática, bem como cenários que refletem estados psicológicos intensos são emulados na concepção espacial de Frankenstein.

As sombras intensas e as composições geométricas, o uso do chiaroscuro, onde os contrastes entre luz e sombra são acentuados, por exemplo, permitiu que tais narrativas pudessem expressar de maneira visual as tensões internas dos personagens. Os cenários oníricos contribuem para a criação de um mundo distorcido, que desafia a lógica e a realidade, transportando o espectador para uma dimensão, onde a percepção e a psique entram em simbiose. Além disso, a estilização dos personagens, muitas vezes caricaturesca, colaborava para a construção de uma atmosfera de desassossego, como é o caso da maquiagem de Jack Pierce, que levava em média quatro horas para ficar pronta e assim, entregar Boris Karloff para a realização das cenas que o tornaram uma das figuras mais icônicas do terror no século XX. Nesse filme de 1931, a maquiagem, o desempenho do ator mencionado e a direção de Whale são pontos artísticos positivos, que ajudaram na cristalização da narrativa no imaginário coletivo. Mas, a ausência da textura percussiva de Bernhard Kaun em mais momentos e o trabalho de montagem de Clarence Kolster são pontos da estrutura que deixam Frankenstein com menos intensidade. Caso ambos os setores tivessem um trabalho mais cuidadoso, o filme seria um pouco melhor do que é. Precisamos, no entanto, entender que na década de 1930, o cinema passava por evoluções. E, nesse caso, estamos diante de um filme que de certa forma, ainda era uma experimentação para um gênero que evoluiu bastante.

Bela Lugosi, intérprete de Drácula, chegou a fazer alguns testes para o filme, mas desistiu, pois alegou “não se interessar em parecer um espantalho”. Os comentários elucidativos de Rudy Behlmer são como uma aula de cinema, pois além de trazer curiosidades, também interpreta a narrativa, cuidadosamente e dentro de seu contexto de lançamento, o que nos leva para outro tópico fundamental para compreender algumas escolhas na concepção do clássico em questão: o Código Hays. Oficialmente conhecido como o “Código de Produção”, foi estabelecido em 1930, mas implementado mais adiante. Por meio desse conjunto de diretrizes regulatórias, a indústria cinematográfica estadunidense moldava a maneira como as histórias eram contadas e os conteúdos apresentados nos filmes. Moralista, o tal código foi implementado com o objetivo de restaurar a “moralidade” nos filmes e proteger o público contra o conteúdo considerado inadequado. Dentre os direcionamentos, tinha a representação da sexualidade, violência, o uso de drogas como algo a ser evitado, culminando na supressão de questões como o adultério, a homossexualidade. Em linhas gerais, um horror maior que o monstro de Frankenstein.  Nos filmes que passavam por esse crivo, e o clássico em questão não ficou de fora, os heróis eram figuras mais virtuosas, enquanto os vilões eram frequentemente punidos no final das histórias, o que reforçava uma moralidade simplista e dualista. Essa abordagem influenciou as produções da época, tornando os filmes mais “seguros” em termos de conteúdo, mas também menos variados e interessantes. Por isso o desfecho de Frankenstein é tão decepcionante.

E, por fim, sobre as cenas mais marcantes, destacadas pelos comentários dessa versão, temos destaques para a criação do monstro, o seu primeiro encontro com a luz, a morte de Maria e o confronto no Moinho. Na passagem do laboratório, para a época, a atmosfera intensa criada pela direção de arte e fotografia, bem como o uso dramático da iluminação e dos efeitos sonoros, marcaram gerações de espectadores e cineastas influenciados pelo clássico. A exaltação de Henry ao ver sua criação ganhar vida na famosa frase “It’s alive! It’s alive!” encapsula a ambição e a loucura de sua busca pela manipulação da vida e da morte. Após criar o monstro, Henry e seu mentor, Dr. Waldman, mantêm a criatura presa. Quando a luz do teto se abre, iluminando o monstro, ele reage instintivamente, levantando os braços de maneira assustadora, mas também vulnerável, tentando alcançar a luz. Nesse momento, a humanidade do monstro e sua inocência inicial ganham destaque. Contrasta a visão simplista de vilania com uma abordagem mais complexa do personagem, acentuando o fato de que ele é, na verdade, uma vítima das circunstâncias. A interpretação de Boris Karloff aqui é magistral, expressando uma mistura de medo, curiosidade e anseio, sem uma única palavra.

A morte de Maria é outro trecho bastante chocante para a época e ainda muito comentado nas análises de Frankenstein. O monstro encontra Maria, uma garotinha a brincar perto de um lago. Ela, sem medo, convida o monstro a brincar com ela. Eles começam a jogar flores na água, observando-as flutuar. Quando acabam as flores, o monstro, na sua inocência e falta de entendimento, joga Maria na água, acreditando que ela também flutuaria. A menina se afoga tragicamente. É uma cena crucial e trágica, pois nos mostra a linha tênue entre a inocência e o horror. A direção de Whale é sensível ao contrastar a pureza infantil de Maria com a incompreensão do monstro. Esse momento faz o público sentir empatia pelo personagem de Boris Karloff, mesmo quando ele comete um ato terrível, evidenciando a complexidade moral presente na trama. E, por fim, o confronto no moinho de vento. O clímax do filme ocorre nesse espaço, onde o monstro se refugia após ser caçado por uma multidão enfurecida. A intensidade dramática dessa passagem é amplificada pelas nuances da emulação que a narrativa faz da estética expressionista e pelo uso do fogo como símbolo de purificação e destruição. O conflito final entre criador e criatura atinge seu ápice aqui, sublinhando temas de criação irresponsável e as consequências inevitáveis de desafiar as fronteiras da natureza.

No geral, um filme para ser visto e conhecido, devidamente compreendido em suas limitações.

Frankenstein: Versão Comentada por Rudy Behlmer – EUA, 1931
Direção:
 James Whale
Roteiro: Garrett Fort, Francis Edward Faragoh (baseado na peça de Peggy Webling e no romance de Mary Shelley)
Elenco: Colin Clive, Mae Clarke, John Boles, Boris Karloff, Edward Van Sloan, Frederick Kerr, Dwight Frye, Marilyn Harris, Michael Mark
Duração: 71 min.

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