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Crítica | The Outrun

O isolamento como instrumento de luta.

por Ritter Fan
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Longa que foi exibido pela primeira vez em janeiro de 2024 em Sundance, The Outrun (algo como A Fuga, em tradução direta) é baseado na autobiografia da jornalista britânica Amy Liptrot que relatou sua luta contra o alcoolismo e serve de veículo para evidenciar mais uma vez e de uma vez por todas a versatilidade de Saoirse Ronan – aquela atriz de prenome impronunciável – e que a própria Liptrot corroteirizou ao lado da diretora alemã Nora Fingscheidt. Trata-se de uma obra focada exclusivamente em Rona, a personagem de Ronan, que sai de Londres para as Ilhas Órcades onde cresceu e onde seus pais vivem separados e, depois, para Papay, uma das ilhas do referido arquipélago ainda mais ao norte em um processo de autoredescoberta e conexão com a natureza.

Para contar essa história, Fingscheidt escolheu a alinearidade narrativa, artifício que é sempre interessante, mas que adiciona algumas camadas de complexidade ao trabalho do diretor e, claro, do montador, no caso Stephan Bechinger. O resultado, aqui, não é sempre homogêneo nesse aspecto, com o espectador talvez precisando de uma “curva” de aprendizado para não se perder nas idas e vindas temporais e espaciais que ocorrem sem nenhum tipo de aviso e sem que se recorra a enquadramentos didáticos. Não quero de forma alguma dizer que o expediente não funciona, pois ele funciona bem quando a fase de adaptação acaba e quando o espectador percebe que há não só os espaços fechados versus os espaços abertos para permitir que tudo seja corretamente situado, como, também, uma espécie de “código de cores” pelas tintas fortes que Rona usa em seu cabelo naturalmente tão loiro que é branco.

Com essa escolha estilística, o longa não imediatamente estabelece sua base narrativa e faz com que a história ameace esfacelar-se antes de firmar-se, algo que, felizmente, acaba não acontecendo, com o foco no alcoolismo violento e destruidor da protagonista logo ficando evidente e criando aquela angústia de algo sem saída no espectador. No entanto, apesar de o roteiro entrar em alguns incidentes graves na vida de Rona, o real foco do filme é na jornada de recuperação, jornada essa que é física e mental, ou seja, que exige que ela saia da movimentada Londres para as isoladas Órcades e, de lá, para a ainda mais isolada Papay para viver sozinha em uma espécie de contêiner transformado em casa (só que com internet!) e que ela passe a enxergar-se em contraste com suas memórias do passado, especificamente do namorado que amava e talvez ainda ame e do pai que sofre de transtorno bipolar.

Outro aspecto essencial à narrativa é a conexão de Rona com a natureza. Apesar de ter aparência árida, as Órcades pululam de vida animal e vegetal em terra e no mar, com o oceano ao redor quebrando violenta e lindamente nos desfiladeiros, criando uma harmonia quase surreal entre beleza e violência, entre paz e fúria, exatamente o tipo de abordagem contrastante que o filme faz da vida de Rona com e sem bebida. Também é digno de nota o quanto o roteiro não banaliza a dependência química como algo cotidiano ou, pior ainda, como algo facilmente evitável ou curável. O álcool é, querendo ou não, reconhecendo ou não, uma praga e o fácil acesso a ele é quase inacreditável, sendo bem honesto, e vemos isso no filme assim como vemos uma luta inglória contra os efeitos nefastos dele em uma pessoa e em todos ao seu redor. Rona sabe disso e esse é uma das razões que a faz escolher o isolamento quase completo.

E, em meio a isso tudo, carregando essa difícil história quase que literalmente nas costas, temos a bela Saoirse Ronan fazendo coisas horríveis, caindo no chão de tanto se embriagar, pegando carona com abusador e batendo violentamente no amor de sua vida, mas também fazendo coisas lindas como mantendo companhia a um pai que precisa de toda ajuda possível, compreendendo os horrores pelos quais a mãe passou em razão do ex-marido e, agora, também em razão da filha e, finalmente, cultivando uma crescente conexão com a natureza que lhe dá um propósito, que serve de guia especialmente considerando a formação em biologia da personagem. Sim, é um filme feito especialmente para Ronan brilhar, mas nem sempre um ator ou atriz consegue o objetivo mesmo quando todos os instrumentos estão ao seu dispor e fico feliz em constatar que Ronan mais do que consegue, ainda que seu trabalho seja mais contemplativo, em grande parte beneficiando-se do silêncio no lugar de interações humanas.

The Outrun pode afastar no começo pelo caminho não-linear que toma, mas o desnorteamento inicial é compensado por um trabalho de interpretação invejável e uma direção que respeita a luta contra o vício e faz uma união umbilical entre ela e o mundo natural ao redor. Trata-se de um filme por vezes até difícil de ver dependendo do quanto o alcoolismo converse direta ou indiretamente com o espectador, mas ele é muito mais bonito e sóbrio do que se pode imaginar. E sua mensagem positiva, na direção da harmonia, é muito bem-vinda.

The Outrun (Idem – Reino Unido/Alemanha, 2024)
Direção: Nora Fingscheidt
Roteiro: Nora Fingscheidt, Amy Liptrot (baseado em história para a tela de Amy Liptrot, Nora Fingscheidt, Daisy Lewis, por sua vez baseada em autobiografia de Amy Liptrot)
Elenco: Saoirse Ronan, Saskia Reeves, Stephen Dillane, Scott Miller, Lauren Lyle, Paapa Essiedu, Izuka Hoyle
Eilidh Fisher, Naomi Wirthner, Danyal Ismail, Posy Sterling, Patch Bell, Nabil Elouahabi, Jack Rooke, Seamus Dillane, Conrad Williamson, Tony Hamilton, Ammar Younis
Duração: 118 min.

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