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Crítica | As Mulheres da Sacada

Uma janela para indiscrições.

por Ritter Fan
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No segundo longa que dirige, a atriz Noémie Merlant (a Marianne de Retrato de uma Jovem em Chamas) inspira-se de longe no clássico Janela Indiscreta para criar uma história que enfatiza algo que deveria ser muito simples, mas que, infelizmente, está longe de ser: a essencialidade do consentimento para que uma mulher possa ser abordada. E, no roteiro que coescreveu com Pauline Munier e Céline Sciamma, Merlant apela para o tom satírico e também para o sobrenatural, fazendo com que suas três protagonistas embarquem em uma jornada auto exploratória e, em última análise, libertadora.

Durante uma canícula em Marselha, importante cidade portuária no sul da França, Nicole (Sanda Codreanu), uma aspirante a escritora, Ruby (Souheila Yacoub), que tem uma conta de conteúdo pornográfico em que usa seu corpo para atrair público pagante e Élise (Noémie Merlant), uma atriz, dividem um apartamento em um grande prédio repleto de generosas sacadas e observam tudo ao seu redor da mesma maneira que são observadas – particularmente Ruby, que não tem pudor algum em andar nua – e, quando se envolvem com um belo vizinho do prédio oposto, uma desgraça acontece, com as três, então, partindo para lidar com a bizarra e também revoltante situação. O estopim narrativo é apenas isso, uma forma de criar uma trama que abre espaço para que as três personagens sejam abordadas, cada uma com seus problemas, seja o bloqueio criativo de Nicole, o namorado insistente de Élise ou o que acontece com Ruby quando ela fica para uma sessão de fotografia com o tal vizinho.

A temática central, porém, é estabelecida em uma espécie de preâmbulo que cria uma espécie de “falso começo” para o longa em que uma vizinha das protagonistas, depois de ser espancada pelo marido, acaba matando-o. Trata-se de uma sequência chamativa, ao mesmo tempo série e cômica, que encapsula tudo o que Merlant quer contar, com a narrativa logo deixando a vizinha e passando a focar em Nicole, depois Ruby e, então, Élise, que tem uma entrada triunfal, por assim dizer, por não exatamente morar com as outras duas. Tudo é muito colorido, exagerado e até caótico, mas, em meio a essa profusão de elementos cênicos no apartamento, nas atrizes e também na área externa do condomínio de apartamentos, a diretora consegue extrair naturalidade, como se tudo não passasse de mais um dia comum na vida das três, o que é, claro, representativo do cotidiano das mulheres em geral em um mundo que ainda, em larga escala, as vê como humanas de segunda classe, abaixo dos desígnios e controle dos homens.

São as atuações da trinca de atrizes que ajudam muito nessa naturalidade cativante. Na verdade, é a fusão de atuações convincentes com situações cotidianas que são trabalhadas de maneira a quebrar barreiras de preconceito que realmente funciona no longa. A profissão de Ruby é um exemplo claro disso, com sua câmera indiscreta ao vivo no quarto enquanto ela se masturba, geme e provoca seus espectadores sendo visto e encarado por suas amigas como algo tão comum e normal quanto é Nicole tentar escrever seu romance, tendo aula online de técnica literária. E o mesmo acontece com Élise, em sequências feitas para “chocar”, admito, mas que funcionam porque ela consegue fazê-las parte de um dia como outro qualquer, seja na cama de hotel com seu namorado querendo transar a todo custo, seja despindo-se e abrindo as pernas na cadeira do ginecologista. As Mulheres da Sacada funciona fundamentalmente porque é relacionável e olha que eu escrevo como homem, imaginando o quão mais relacionável é para mulheres.

O lado macabro da história é outro que funciona bem, passa sua mensagem com força, especialmente quando a narrativa embarca em alegorias inteligentes mais para o final, com outras mulheres sentindo e fazendo o mesmo que as três precisam fazer para resolver seu problema comum imediato (o vizinho, como disse). O que não funciona – pelo menos não para mim – é quando a narrativa se subdivide – mantendo-se intimamente relacionada com a história principal, porém – em uma trama sobrenatural que envolve apenas Nicole, mesmo que ela, como escritora, seja a personagem ideal para ser a recipiente de visões perturbadoras de homens abusadores no purgatório. O problema é que esse lado da narrativa não só parece tematicamente distante de todo o restante, como didatiza talvez demais a lição que Merlant consegue habilmente passar sem precisar recorrer a esse artifício. Já estava tudo lá, às escâncaras, e o sobrenatural vem para redobrar, triplicar os esforços de tornar ainda mais claro o objetivo da película, algo que eu nem sempre desgosto quando os assuntos são teimosa e veementemente negados por muitas e muitas pessoas por aí, mas que, aqui, passou um pouco do ponto.

Mas, com ou sem fantasmas, As Mulheres da Sacada definitivamente é um filme libertador que abre seus braços para acolher e discutir inteligentemente e com muito bom humor uma causa nobre que não deveria fazer, mas faz parte do cotidiano – mesmo! – de metade da população do planeta. A janela indiscreta de Noémie Merlant é completamente escancarada e a cineasta e atriz oferece uma visão ferina, inegável e de peito aberto sobre tudo o que consegue observar e faz isso com um sorriso constante no rosto, sorriso esse contagiante e, também, muito elucidativo.

As Mulheres da Sacada (Les Femmes au Balcon – França, 2024)
Direção: Noémie Merlant
Roteiro: Noémie Merlant, Pauline Munier, Céline Sciamma
Elenco: Souheila Yacoub, Noémie Merlant, Sanda Codreanu, Christophe Montenez, Lucas Bravo, Nadège Beausson-Diagne, Henri Cohen
Duração: 104 min.

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