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Crítica | O Poço 2

Sem fundo.

por Luiz Santiago
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No badalado O Poço (2019), o diretor Galder Gaztelu-Urrutia propôs uma alegoria audaciosa: retratar a dinâmica de uma pirâmide social em funcionamento, espelhando a sociedade capitalista em sua relação com recursos e sobrevivência. O filme abriu um vasto leque de interpretações, quase todas convergindo para a luta de classes, os privilégios e a escassez enfrentada por diferentes grupos, confinados em suas celas, à mercê de uma rotação mensal na enigmática prisão. Ali, uma plataforma descia do nível 1 ao 333, com cada vez menos comida disponível à medida que avançava. Embora o longa tenha se fechado sob o manto da “mensagem oculta para deleite do público” — uma armadilha narrativa que muitos cineastas ainda caem –, a obra conseguiu transmitir sua densa crítica social. No entanto, ao aceitar produzir um segundo filme, Gaztelu-Urrutia desaguou no desastre criativo.

Quando um enredo de cunho político, crítico a uma determinada conjuntura, decide se aventurar em devaneios narrativos que podem significar “qualquer coisa“, ele compromete a essência de sua abordagem primordial: a materialidade histórica, a objetividade crítica, a exposição da realidade através de um olhar afiado. Ao insistir em uma continuação de O Poço, a produção espanhola abandona o único mérito da obra original, substituindo substância por simbologia vazia. Amplia-se as cenas de violência e intensifica-se os elementos oníricos e os delírios provocados pela fome dos prisioneiros nos níveis mais baixos, esvaziando por completo a mensagem inicial. E mais, ao flertar com a “esperança nas crianças” — o mais ilusório dos conformismos sociais –, a narrativa abdica de uma crítica verdadeira, anestesiando a geração corrente, que teria o poder de agir imediatamente, enquanto deposita a responsabilidade em indivíduos que não estão sendo educados para transformar o mundo! No fundo, é uma aceitação embasbacada do status quo, perpetuando a ordem desejada por aqueles que continuam lucram com essa inércia.

Há franquias em que cada produto se sustenta de forma independente, preservando a mitologia original, mesmo quando ambientado em diferentes épocas. O Poço 2, porém, prometia trilhar um caminho distinto, anunciando o retorno de Ivan Massagué e Zorion Eguileor, e sugerindo respostas sobre a origem do poço e o significado do “fundo” da prisão. Ao assistir ao filme, contudo, vemos que os atores que retornam não têm qualquer relevância para a trama e, no que se refere ao cânone e aos mistérios do poço, absolutamente nada é desvendado. Ao contrário, novos personagens sem graça são introduzidos na narrativa, que tenta explorar supostas leis de benefício comunitário, elaboradas por pessoas sem qualquer rigor jurídico e sustentadas por um discurso falacioso de igualdade. Embora a proposta seja interessante, falta-lhe o espaço necessário para desenvolver-se e alcançar um final significativo. Somos apresentados às premissas e suas implicações, mas o desenrolar da trama se limita a uma sequência de cenas de violência e tortura, culminando em um plano de fuga que não se concretiza como prometido. Em vez de trazer contexto palpável, o longa abre mais uma porta para simbolismos idealistas; e o que poderia ter se mantido até como aceitável, desaba por completo.

Renunciando à crítica que deu relevância ao primeiro filme, Gaztelu-Urrutia sentencia O Poço 2 ao papel de mímica do original, servindo apenas como material para vídeos e textos de espectadores afeitos a pausas da projeção a cada três segundos em busca de easter eggs, interpretando-os à luz de um Dicionário de Símbolos qualquer. É essa condição que condena o filme ao fracasso. Desde o início, a produção parece implorar por explicações, para ter seus mistérios esmiuçados pelos “detetives digitais da Sétima Arte” que produzem teorias filosóficas sobre “o que você não entendeu sobre o encerramento desta obra-prima“. Mas, afinal, o que há para ser salvo aqui? A fotografia, talvez? Depois da pequena expansão cromática do original, este aqui não merecia uma concepção diferente, mesmo que numa paleta de cores ainda reduzida? A imitação pouco imaginativa do primeiro filme conseguiu gerar apenas meia dúzia de tomadas que são esteticamente notáveis e dramaticamente importantes para o filme. Mas isso não basta.

A concepção de O Poço 2 é tão carente de sentido em sua própria proposta — desprovida de crítica autêntica ou de qualquer profundidade — que falha em transmitir ao público uma defesa coerente de suas ideias. O arco da convivência entre diferentes não se completa. O enredo sobre leis arbitrárias é relegado a uma pseudo-revolução, onde o melhor aspecto da trama é diluído em moralismos — ou seja, arruína-se o que ainda restava de interessante. Para piorar, temos as “crianças-mensagem“, utilizadas como símbolos de uma possível mudança no sistema e redenção de certos personagens. Nada se conclui sem mergulhar no abismo dos mistérios estéreis, que pouco dizem sobre a obra em si, mas alimentam discussões fúteis sobre supostas pistas ocultas e suas interpretações psicológicas, resultando em comentários do tipo “você não entendeu o filme”, o pseudo-argumento de quem adora defender escolhas cinematográficas ruins. O pior é que não sabemos se é possível cavar ainda mais fundo. Se a banda seguir tocando do mesmo jeito, O Poço 3 certamente nos dirá.

O Poço 2 (The Platform 2) — Espanha, 2024
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Roteiro: David Desola, Galder Gaztelu-Urrutia, Egoitz Moreno, Pedro Rivero
Elenco: Milena Smit, Hovik Keuchkerian, Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Bastien Ughetto, Armando Buika, Pedro Bachura, Antonia San Juan, Alexandra Masangkay, Emilio Buale, Albert Pla, Gorka Zufiaurre, Ken Appledorn, Hoji Fortuna, Mariamu Toure, Sesinou Henriette
Duração: 99 min.

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