Publicado inicialmente em 1818, e depois complementado por prefácios e outros textos complementares, Frankenstein é um dos romances do século XIX com maior projeção para debates ainda na atualidade, haja vista o estabelecimento de diversos temas em voga no contemporâneo, tais como a relação da humanidade com a morte, os impactos das tecnologias em constante evolução e a ética no desenvolvimento de empreitadas científicas. Filmes, séries, histórias em quadrinhos, games, dentre tantos outros produtos, foram e ainda são influenciados pelo livro de Mary Shelley. Alguns são mais diretos, traduções voltadas ao enredo publicado pela escritora britânica, outros mais livres, com cruzamento de personagens de outras histórias literárias e cinematográficas. Temos também as cinebiografias que apresentam os bastidores de composição do romance que contextualizam e mesclam fatos e relatos em torno da trajetória de Mary Shelley. Como um terreno intenso e constantemente em desenvolvimento, o âmbito da cultura nos permite, enquanto interpretadores de narrativas artísticas, ilações com base em nossos respectivos repertórios de leitura e consumo. Foi com esse ponto de partida que surgiu a indagação sobre o que será lido ao longo desse artigo, texto que trafega diante de uma seguinte linha de raciocínio: em qual momento o antagonista Jason Voorhees, da franquia Sexta-Feira 13, estabeleceu diálogos com o romance gótico Frankenstein?
Importante lembrar: em Sexta-Feira 13 Parte 6: Jason Vive, os realizadores não construíram a narrativa em torno de Frankenstein. Tampouco nenhum personagem aparece lendo o livro ou apresenta um nome que referencia as figuras ficcionais do clássico gótico. Há, por sua vez, uma conexão irônica com a história na maneira como o antagonista ressurge do mundo dos mortos. E isso, por meio de um dinâmico e divertido preâmbulo, ocorre por meio de uma corrente elétrica natural, oriunda de uma tempestade. Aqui, se estabelece o que proponho como reflexão. A ilação, termo que na lógica e na filosofia, designa o processo de deduzir ou inferir conclusões a partir de premissas específicas. A ilação pode ser tanto dedutiva quanto indutiva, cada uma apresentando características próprias e desempenhando um papel vital na formação de argumentos. É a nossa capacidade, ao trazer para o campo da crítica e da comparação, de relacionar as coisas por meio do acionamento de nossos repertórios de leitura e conhecimento. Para quem conhece a base narrativa de Frankenstein, é cristalina a menção ao livro nos primeiros momentos no ótimo sexto episódio da franquia slasher que pavimentou um longo caminho pelos anos 1980. Depois que o quinto filme fracassou nas bilheterias e desagradou fãs ao trazer um assassino diferente do que tínhamos acompanhado nas quatro primeiras produções da série, os realizadores resolveram apostar numa abordagem mais criativa e diferenciada, algo que culminou na ressuscitação do monstro original, num roteiro metalinguístico que satiriza a própria condição do universo de Crystal Lake e dos filmes do subgênero slasher, antecipação de algo que seria feito com maior refinamento dramático na franquia Pânico, iniciada em 1996.
Para conferirmos legitimidade nessa ilação, creio ser relevante traçar um breve, mas elucidativo panorama do romance de Mary Shelley, sem deixar traçar um dos pormenores que interessam ao texto que você acompanha: o impacto e a recepção da sociedade na época dos experimentos em torno da eletricidade, em especial, as atividades do controverso Luigi Galvani. Sobre o romance, temos estabelecido é uma assustadora história que se inicia com as cartas de Robert Walton, um explorador que está em uma expedição ao Polo Norte. Durante sua jornada, ele encontra Victor Frankenstein, achado por alguns dos seus tripulantes em um estado de desespero profundo. Através das narrativas de Victor, o leitor mergulha em seu passado sombrio. Fascinado pela possibilidade de dar vida ao inanimado, ele decide criar um ser a partir de partes de cadáveres. Após meses de trabalho obsessivo, finalmente consegue trazer a criatura à vida. No entanto, ao ver o que criou, Victor se apavora com sua aparência grotesca. A criatura, agora abandonada por seu criador, é rejeitada pela sociedade, que a considera monstruosa. Esse ato de irresponsabilidade de Victor desencadeia uma série de eventos trágicos. A criatura, que busca desesperadamente aceitação e compreensão, começa a experimentar a dor do isolamento e da rejeição. Essa intensa busca por vinculação emocional deixa o monstro cada vez mais ressentido.
A desprezível relação entre Victor e sua criação se torna um vicioso ciclo, com situações que culminam em vingança. A criatura exige que Victor crie uma companheira para ela, prometendo abandonar a sociedade. Apesar de inicialmente concordar, Victor desiste no último momento, temendo as consequências de criar outro ser semelhante. Essa decisão provoca a fúria da criatura, que inicia um caminho de destruição. Nessa perseguição entre criador e criatura, temos um caminho pavimentado por tragédias e perdas, desenvolvimento que nos remete ao próprio processo de luto em diversas frentes, responsáveis por abater a escritora Mary Shelley, lhe inspirando profundamente no processo de cada passagem do romance. Como é de se esperar, a história culmina em um confronto trágico no qual Victor, consumido pela culpa e pelo remorso, persegue a criatura até as regiões árticas, onde se encontra com Walton, antes de sucumbir. Em suas páginas, Frankenstein explora temas como a busca por identidade, a responsabilidade ética na ciência e as consequências do isolamento e da rejeição. É uma narrativa que tal como podemos observar, continua a ressoar no contemporâneo, refletindo preocupações contemporâneas sobre a natureza da criação e os limites da ambição humana. Ao longo de sua tessitura, Shelley, uma mulher amplamente culta, haja vista a herança política e cultural de seus pais, emulou todo o seu manancial de leituras, juntamente com observações bastante ativas do que acontecia na época. O fascínio de pesquisadores, alquimistas e experimentadores, bem como a relação da humanidade com as possibilidades diante da eletricidade encontraram espaço no romance, como podemos contemplar na vida gerada em laboratório por Victor Frankenstein.
Em muitos livros, artigos e ensaios que analisam Frankenstein, somos informados que o fascínio pela eletricidade no contexto da narrativa de Shelley não apenas contribui para a construção do monstro, mas também serve como uma metáfora complexa sobre os limites da ambição humana e suas repercussões. Durante os anos em que Shelley escrevia o romance, a eletricidade estava emergindo como uma força poderosa de transformação. Experimentos como os de Luigi Galvani, que observou a reação de patas de rãs expostas à eletricidade, e de Alessandro Volta, com suas ideias sobre a pilha elétrica, fascinavam tanto cientistas quanto o público. A eletricidade, com suas possibilidades aparentemente infinitas, era vista como uma variável que poderia transcender as limitações humanas e, dentro desse contexto, transformava-se em símbolo de poder e controle. No livro, Victor Frankenstein, motivado por um intenso desejo de desvendar os segredos da vida e da morte, utiliza a eletricidade como o meio pelo qual ele reanima o ser que criou. A busca de Victor pelo conhecimento é paralela à busca de muitos cientistas de sua época, que viam na eletricidade as chaves para os mistérios da existência. Ele empilha partes de corpos, reunindo-as. O uso da eletricidade não é apenas uma escolha narrativa. Podemos observar ao longo do livro que ela também simboliza a linha tênue entre criação e destruição. Victor, ao tentar utilizar a eletricidade para conferir vida ao seu monstro, ilustra a ambição humana em confrontar os limites naturais, mas também nos avisa sobre as consequências potencialmente catastróficas dessa ambição. Essa energia, que inicialmente poderia ser vista como uma força de vida, ao longo dos capítulos, nos revelará seu potencial devastador, assim que o monstro, dotado de sensações humanas, encarará o preconceito e a rejeição da sociedade.
Interessante observar que a eletricidade no romance transcende o seu significado literal e adquire um papel simbólico na reflexão sobre a condição humana. O monstro criado por Victor é uma representação do “Outro”, do que é descartado ou marginalizado. Ele é um ser que, embora tenha sido criado com a intenção de ser um avanço na compreensão da vida, torna-se uma criatura incompreendida e temida, refletindo o medo da própria criação. A eletricidade, então, também pode ser interpretada como um eco do potencial humano para a criação e destruição. O deslumbre científico que atrai Victor Frankenstein resulta em sua ruína pessoal quando ele percebe que não pode controlar as forças que despertou. A frase “Eu sou o pai, eu sou o criador, mas não posso ser o responsável pelo que criei” encapsula o cerne do dilema em relação à responsabilidade que acompanha o conhecimento. Assim, em um mundo onde a eletricidade simboliza vida, o monstro se vê constantemente privado dela pelo medo e pela aversão das pessoas ao seu redor. Em vez de ser acolhido, ele é alvo de desprezo, o que o leva a um profundo estado de isolamento e desespero.
E, sendo o galvanismo, um ponto chave para compreensão das propostas reflexivas de Frankenstein, torna-se relevante também, antes de adentrar na comparação realizada no slasher Sexta-Feira 13 Parte 6: Jason Vive, responder ao seguinte questionamento: quem foi mesmo Luigi Galvani? Bom, caro leitor, figura social controversa, Galvani foi um cientista e médico italiano do século XVIII, muitas vezes lembrado como um pioneiro no campo da eletricidade, particularmente devido a seus experimentos com rãs e seus impactos na biomedicina e na filosofia natural de seu tempo. Para compreender a importância de suas contribuições, é necessário desenvolver uma visão clara do contexto histórico e das implicações que seus trabalhos tiveram na ciência contemporânea. Nascido em 1737, em Bolonha, na Itália, ele viveu e atuou numa época marcada pela Revolução Científica e pelo Iluminismo, movimentos que promoveram a razão e a observação empírica como os principais métodos para adquirir conhecimento. Durante essa época, a eletricidade começava a ser explorada de maneira mais sistemática. Cientistas como Benjamin Franklin e Giovanni Battista Beccaria já tinham realizado estudos preliminares sobre fenômenos elétricos, mas a compreensão sobre a eletricidade em relação ao corpo humano ainda era bastante limitada. Nesse cenário de inovações, Galvani, inicialmente um anatomista, se deparou com a eletricidade em 1780, quando uma de suas experiências revelou que as pernas de uma rã morta se contraíam quando expostas a um estímulo elétrico. Esta descoberta o levou a investigar mais profundamente a relação entre eletricidade e fisiologia, culminando na sua famosa teoria da “eletricidade animal”.
Galvani acreditava que existia uma forma de eletricidade inerente nos organismos vivos, um conceito que desafiou as ideias prevalentes da época. Sua obra mais notável, De Viribus Electricitatis in Motu Musculari, publicada em 1791, discutiu suas descobertas e lançou as bases para o estudo da bioeletricidade. Os experimentos de Galvani com rãs proporcionaram um vislumbre fascinante sobre a eletricidade vital. Ao conectar os nervos de uma rã a fontes de eletricidade, ele observou que as pernas se contraíam, levando à ideia de que a eletricidade poderia ser uma força que aciona os movimentos musculares. Galvani interpretou isso como uma evidência da presença de uma “alma elétrica”, uma noção que equivalia a uma força vital inerente a todo ser vivo. Ademais, ele também explorou a questão da forma como as correntes elétricas poderiam interagir com as partes do corpo, sugerindo que o sistema nervoso poderia funcionar através de impulsos elétricos. Essas descobertas não só forneceram insights sobre a fisiologia, mas também abriram discussões sobre a natureza da vida e a intersecção entre eletricidade e biologia, áreas que se desenvolveriam mais tarde em campos como a neurociência e a biofísica. Suas ideias levantaram questões filosóficas sobre o que define a vida e como as forças naturais influenciam os organismos. A ideia de que a eletricidade poderia ser um princípio vital promoveu um debate sobre a dualidade entre corpo e espírito. A visão de Galvani contrastava com a concepção mecanicista da biologia que predominava na época, que tendia a ver os organismos como máquinas complexas. Tudo isso foi material para avanço narrativo em Frankenstein. Com o tempo, os trabalhos de Galvani também influenciaram outros cientistas, como seu contemporâneo Alessandro Volta, que, discordando da visão vitalista de Galvani, desenvolveu a bateria elétrica, conhecida como coluna de Volta. Assim, essa rejeição das ideias de Galvani, na verdade, culminou no surgimento de novas teorias sobre a eletricidade, que mais tarde se tornariam a base para a física moderna. Observe o infográfico acima e entenda um pouco mais.
Diante do exposto, respondo ao leitor: Jason não é ressuscitado pela perspectiva do galvanismo em Sexta Feira 13 Parte 6: Jason Vive. Há, na verdade, como descrito na abertura do texto, um paralelo paródico no preâmbulo do filme. Talvez o melhor da franquia, desde o ritmo narrativo aos personagens desenvolvidos além da média, algo que não aconteceu nos roteiros de seus antecessores, o filme flerta com a metalinguagem constantemente e traz na cena de abertura, Tommy, sobrevivente de Sexta-Feira 13 Parte 4: O Capítulo Final. Traumatizado pela perda de sua mãe, afinal, ele e a irmã foram os únicos sobreviventes da trama, o personagem consegue escapar do reformatório onde esteve durante a adolescência e decide visitar o túmulo do antagonista em Crystal Lake. A ambientação é noturna e um amigo o acompanha. Ao chegar, abre a cova, desfere vários golpes no cadáver e, num rompante de raiva, arranca um dos pilares de ferro da grade que circunda o cemitério e empala o monstro adormecido. Interessado em incendiar o caixão e ver Jason se transformar em cinzas, ele não esperava pela tempestade que se instaura. Um raio acerta o pilar e, por meio de uma descarga elétrica, Jason é ressuscitado. Salvaguardadas as devidas proporções comparativas, o mascarado da franquia é trazido de volta para mais um império de sangue e morte pelo mesma via que faz o monstro de Victor Frankenstein ressurgir: a eletricidade. Desse ponto em diante, o filme se desenvolve em duas linhas: a tentativa de Tommy em alertar as autoridades e, do outro lado, vivo e mais forte do que nunca, Jason, seu antagonista, a empilhar corpos pela região. Essa conexão com a eletricidade acontece também na abertura de Sexta-Feira 13 Parte 8: Jason Ataca Nova Iorque, mas sem o mesmo tom e vigor do sexto capítulo da franquia.
Presente não apenas na abertura metalinguística do filme, a conexão com a eletricidade também foi constante em diversas artes, tantos as oficiais quanto os materiais produzidos com muita criatividade pelos fãs. Dirigido e escrito por Tom McLoughlin, o filme foi lançado em 1986, frequentemente lembrado por revitalizar a franquia com uma combinação única de horror e humor. Como mencionado anteriormente, após a morte definitiva de Jason na quarta parte, os realizadores envolvidos na franquia decidiram seguir sem o personagem em Sexta-Feira 13 Parte 5: Um Novo Começo. Devido à reação negativa dos fãs, a sexta parte trouxe Jason de volta. Tom McLoughlin introduziu um elemento sobrenatural na ressurreição de Jason, declaradamente inspirado por filmes clássicos de monstros e histórias góticas, leia-se: Frankenstein. É um filme que cimenta Jason Voorhees como uma entidade invencível, similar a um zumbi, capaz de resistir a danos fatais. Isso abriu novas possibilidades para as sequências subsequentes. Interpretado por Tom Mathews, Tommy Jarvis tenta destruir os restos mortais de Jason para garantir que ele nunca mais volte. No processo, inadvertidamente traz Jason de volta à vida. Tudo bem que estamos diante de um personagem traumatizado, mas digamos que sua atitude trouxe um rastro de tragédia para a região, ao mexer naquilo que se encontrava quieto. Não chega a ser egoísta e louco como Victor Frankenstein em seu laboratório, mas possui conexões comportamentais de impulsividade muito semelhantes. E, caro leitor, para terminar: há ligações entre o filme, o romance Frankenstein e a trilha sonora. Harry Manfredini, como de habitual, assinou a textura percussiva, dando novos toques ao tema musical já estabelecido no primeiro filme.
Há, no entanto, a presença de Alice Cooper na trilha sonora e na campanha promocional da produção. O artista, na época, lançou um álbum em paralelo ao surgimento de Sexta-Feira 13 Parte 6: Jason Vive nas salas de cinema. O artista, uma das figuras mais emblemáticas do rock, sempre foi conhecido por suas letras provocativas, performances teatrais e uma persona de horror que mescla elementos da cultura pop e do cinema. Uma das faixas do álbum, Teenage Frankenstein, é tocada em determinado momento da narrativa, em um jogo metalinguístico que explica o quão a abordagem do capítulo da franquia é metalinguístico e possui ilações pertinentes com um dos principais elementos do romance de Mary Shelley: a ressuscitação por meio da eletricidade, cada um à sua maneira, obviamente. A faixa principal, por sua vez, é He’s Back (The Man Behind The Mask), inserida perfeitamente no contexto cultural da época, onde figuras como Michael Myers e Freddy Krueger se tornaram ícones seculares. A letra da canção, carregada de ironia e ambiguidade, começa com a declaração enfática de que “ele está de volta”, num retorno que evoca uma sensação de expectativa e medo. O refrão que entoa sobre “homem por trás da máscara” não deixa de delinear que ele é um assassino, mas também, uma figura de fascínio. É uma dualidade alumina o moralismo nas histórias de terror, onde o vilão se torna uma figura de culto e atração. Musicalmente, a faixa é uma mistura de rock pesado com elementos característicos da música dos anos 1980, como sintetizadores e riffs de guitarra enérgicos. Essa produção polida reflete o estilo de Alice Cooper da época, que incorporava sonoridades contemporâneas, enquanto se mantinha fiel às suas raízes do rock clássico. A batida acelerada e os arranjos vibrantes criam uma energia intensa que se alinha à urgência do tema abordado.
Em linhas gerais, dois monstros que sempre estão de volta: Jason e a criatura de Frankenstein, com suas imagens cristalizadas em nosso imaginário. E, nesse filme, conectados pela eletricidade que pode representar tanto a força da vida como e inevitabilidade da morte (nesse caso, dos outros, nunca dos monstros, pois eles sempre retornam, não é mesmo?).