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Crítica | Coringa: Delírio a Dois

Um musical para Arthur e Lee.

por Fernando Campos
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Todos buscam ser amados. Com a desigualdade crescente e falta de propósito em meio a tanto caos, conceitos como o romance ou a idolatria parecem uma fuga contra a melancolia. Contudo, qual a sensação de ser amado, mas pelos motivos errados? Arthur Fleck passou a vida toda menosprezado pela sociedade. Com o sonho de se tornar um comediante famoso, o máximo que conseguiu foi um emprego como palhaço de rua, alvo de constantes desrespeitos. Até que num misto de insanidade e impulsividade, comete uma atrocidade na televisão e, finalmente, acaba reconhecido como um ícone local. Nos braços do povo. Mas que povo?

Arthur se vê como um artista. O assassinato cometido ao vivo na televisão, para ele, é peça de uma piada muito maior e não um crime qualquer. Chegou o reconhecimento como grande comediante? Não. Porque o povo que abraçou Arthur não é fã de comédia ou sequer de arte. Buscavam apenas um representante de seus desejos mais obscuros e impulsos macabros. O Coringa simboliza isso para seus “fãs”. A questão é: Arthur está satisfeito em receber esse tipo de amor? 

De alguma forma, essa história parece ter acontecido com o diretor Todd Phillips após Coringa. Ele sempre quis ser um artista (para os padrões dele de “arte”). Iniciou na indústria com Se Beber, Não Case. Passou por Cães de Guerra. Até que magicamente, com um projeto aleatório que ninguém esperava, foi alçado para Cannes, para o Oscar, pelo Coringa. Mas quem é fã de Coringa? A indústria elogiou, com razão, o estudo de personagem acerca de uma mente narcisista. Mas quem envia amor para Coringa até hoje? Aqueles que querem um pedacinho daquela insanidade. E agora? O que o artista faz diante disso?

A sequência dessa história, Coringa Delírio a Dois, traz os dois artistas lidando com as consequências de suas obras alcançarem um nicho que não gostariam. O filme mostra Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) internado em um hospital psiquiátrico após os acontecimentos no Murray Franklin Show. Lá, ele conhece Harleen Quinzel (Lady Gaga), uma piromaníaca que fica fascinada por sua história. Juntos, eles exploram a mente de Arthur e os eventos que o levaram a se tornar o Coringa. Enquanto isso, o protagonista precisa lidar com o processo judicial de seus crimes, apelidado em Gotham como o Julgamento do Século.

Para se provar como artista e se distanciar daqueles que amam Coringa pelos motivos errados, Todd Phillips propõe aqui uma desconstrução do primeiro filme e do seu protagonista. A primeira estratégia, que chamou a atenção desde o anúncio do projeto, foi optar por uma narrativa musical. Sim, Coringa Delírio a Dois é um musical porque a música exerce um papel ativo na história e serve para desenvolver a história com uma função maior.

A escolha das músicas, indo de canções clássicas até produções originais, merece elogios. As músicas isoladamente soam bem ao ouvido, mostram que em meio aquela insanidade existe um romance real e pontuam com precisão a época da narrativa, com canções como Close to You e If My Friends Could See. No entanto, para dirigir um musical, não basta escolher músicas atraentes e construir cenas belas aos olhos. O mais importante é a forma com que os números musicais contam a história e desenvolvem a proposta.

Portanto, vale dizer que Todd Phillips é medíocre como diretor de musical, a principal proposta do filme. Ressalto a positiva coragem do diretor em evitar os caminhos mais óbvios, recusando-se a ser uma zona de conforto para os fãs do primeiro filme. Todd Phillips, que já teve dificuldades em sequências, como em Se Beber, Não Case 2 e 3, tenta aqui algo diferente. Mas boas ideias são apenas o início da construção de uma obra.

Essa busca por novas camadas no protagonista através de seu senso musical — como paixão e arrependimento — não se desenvolve como poderia. O filme repete muitas de suas próprias ideias sem criar uma progressão dramática convincente. O lúdico representado na sequência inicial de animação, “Minha Sombra e Eu”, acaba sendo reiterado ao longo do primeiro e segundo ato sem aprofundamento, e o que começa promissor logo se torna cansativo.

A edição, por sua vez, não contribui para amplificar a tensão ou transmitir a sensação de crescente loucura que define aquele universo. Diferente do primeiro Coringa, que conduzia o espectador até um clímax memorável, aqui o tom permanece estático. Embora o uso das cenas musicais sirva para expandir o narcisismo de Arthur, elas se tornam repetitivas e falham em trazer um impacto dramático significativo. Flertar com o musical é ousado, mas a proposta perde força quando não encontra uma função clara dentro da narrativa.

Visualmente, há uma dualidade. As sequências musicais são esteticamente belas, com uso do contraluz e cores saturadas, sugerindo uma fantasia vivida por Arthur e Lee. No entanto, esse contraste parece destoar da ideia de desconstruir o protagonista e o deslocamento em um mundo que parece maior do que ele. Já a fotografia, que no primeiro filme explorava a decadência externa de Gotham para refletir a psique de Arthur, aqui se restringe a ambientes fechados, como Arkham e o tribunal. A insistência em close-ups revela uma dependência excessiva no elenco, mas gera pouca energia visual.

Por falar nos atores, Joaquin Phoenix segue brilhante como Arthur, proporcionando tanto uma interpretação psicológica quanto física bastante complexa. Ao mesmo tempo que o protagonista parece em agonia constante isso de alguma forma o liberta das convenções sociais que tanto despreza. Enquanto isso, é admirável que Lady Gaga amadureça como atriz e deixe de lado os exageros mal colocados em Casa Gucci, mas ela oferece poucas nuances para Lee, com um olhar vazio que pouco transmite, e a personagem torna-se a mais previsível de toda a trama. Em contrapartida, vale o elogio para Brendan Gleeson, com uma presença corporal imponente e intimidadora como o guarda Jackie ao mesmo tempo que possui uma voz afável e acolhedora. O personagem de Gleeson, por exemplo, parece ter muito mais camadas do que a Lee de Gaga.

Talvez o maior problema de Coringa: Delírio a Dois esteja nessa combinação desordenada de elementos. A transição brusca do musical ao drama de tribunal soa desconexa, e a obra nunca parece integrar esses gêneros de maneira orgânica. Mesmo a conclusão, que poderia ser intrigante ao confrontar as consequências das fantasias de Arthur, acaba parecendo abrupta e mais interessada no choque do que na coesão narrativa. Phillips estava tão interessado em desconstruir a imagem de seu primeiro filme que acabou deixando de lado aquele brilhante estudo de personagem. Aqui, as ações de Arthur soam apenas aleatórias.

O que a audiência descobre no final, sejam os cidadãos de Gotham no Julgamento do Século ou o espectador de Coringa Delírio a Dois, é que os dois protagonistas dessa história não passam de artistas desinteressantes. Este filme é um experimento corajoso, mas que se perde na execução de um cineasta limitado. O flerte com o musical e a tentativa de novas camadas psicológicas são bem-vindos, mas acabam se dissolvendo em uma narrativa repetitiva e desconexa. A primeira obra foi maior do que o artista.

Coringa: Delírio a Dois (Joker Folie à Deux) – EUA, 2024
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips, Scott Silver
Elenco: Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Zazie Beetz, Brendan Gleeson, Catherine Keener, Steve Coogan, Harry Lawtey, Leigh Gill, Jacob Lofland
Duração: 138 min

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