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Crítica | O Messias da Destruição

O bingo da irritação coletiva.

por Luiz Santiago
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Se algum dia você estiver procurando um filme para ficar incomodado, para rir de nervoso, para ver coisas absurdas, nojentas, enraivecedoras e questionáveis em uma miríade de sentidos, escolha O Messias da Destruição, sem pensar duas vezes. Assinado por Christoph Schlingensief, este longa de 1996 mantém a insana ousadia característica da filmografia do diretor, mergulhando no cerne da hipocrisia política do Ocidente (especialmente dos países centrais), personificada pela atuação questionável da Organização das Nações Unidas em cenários de conflito. A trama é ambientada em um acampamento militar na África — não há a especificação de país, mas é importante dizer que o filme foi rodado no Zimbábue –, e escancara as contradições de uma missão de paz liderada por um general alemão cuja esposa dá à luz àquele que pode ser o Messias e trazer a salvação a todos… ajudando a destruir os Estados Unidos.

Mestre da provocação, o cineasta não economiza em sarcasmo e humor ácido para desconstruir a imagem idealizada da civilização que diz representar a democracia e levar a liberdade aos países que “obviamente precisam” dela, mas aparentemente são “tímidos” e, por isso, nunca pediram por esta “ajuda” aos gigantes do capital. Através de uma estética crua e grotesca, Schlingensief expõe as entranhas de um sistema que se diz humanitário, mas que sempre se alimenta da escassez e da guerra, tentando maximizar o lucro e as zonas de influência levando nações inteiras a um atraso de séculos. O humor, longe de amenizar o impacto das imagens, atua como um bisturi sociológico, revelando os tumores de um mundo repleto de conflitos, extremismos e desigualdades.

O estilo de filmagem “inquieta e urgente” que conhecemos em obras como Menu total e O Massacre Alemão da Serra Elétrica está muito mais controlado e bem administrado aqui, servindo como observador onipresente dos eventos, transformando o espectador em testemunha ocular da ascensão de uma liderança política ditatorial-religiosa, e da preparação de um ato terrorista, uma vingança por décadas de ocupação e dominação direta e indireta. No aspecto religioso, talvez uma das áreas mais venenosas da crítica do diretor, vemos como lideranças obscuras e rejeitadas em certos espaços criam novos núcleos de fanáticos, aumentando o seu séquito e obtendo grande influência política, moldando os rumos da nação ao bel-prazer de sua fé e interesses nada benfazejos.  

O elenco transita com maestria entre o drama antropológico enlouquecido e a comédia absurdista do diretor, compondo personagens propositalmente caricatos e, ao mesmo tempo, profundamente humanos. A atuação de Udo Kier, no papel do general Brenner, é emblemática: um misto de arrogância, fragilidade e segredos pessoais que ele faz de tudo para esconder da sociedade. Nesta seara, o filme oferece um verdadeiro banquete, porque todo tipo de infâmia, manias e crimes hediondos ligados às ações individuais são expostos na tela, indo do abuso sexual de um bebê ao incesto. Temos ainda imitações de hábitos culturais africanos apropriados por grupos estrangeiros — e o diretor critica o racismo disfarçado de etnografia — e uma ferrenha ironia no trato dado pelos representantes da ONU ou da igreja aos africanos, tidos como miseráveis selvagens que precisam ser salvos de si mesmos e da escassez de sua nação — encobrindo que a tal escassez é provocada pela dinâmica econômica encabeçada pelos EUA e outros países no centro do capitalismo, por exemplo.

O nascimento do Messias negro que posteriormente é desfigurado e se torna uma aberração sexualizada, com ganas despóticas, é a corrupção da esperança de um novo mundo, mostrando que a continuidade de campanhas e “ajudas” das potências mundiais jamais serão capazes de criar nações africanas livres das amarras do colonialismo. Denunciando a incapacidade de ação efetiva da ONU no contexto do Genocídio em Ruanda (1994) e das guerras nos Bálcãs em toda a década de 1990, o diretor mostra como as nações oprimidas criam grupos e empossam lideranças que querem repetir o horror da dominação no solo do dominador, vide o sonho do déspota local que conspira para matar o presidente dos EUA por meio de um foguete nazista descartado, alimentado pela queima de sacrifícios humanos.

Ver as vítimas históricas fazendo alianças com seus opressores e utilizando ferramentas e práticas de seus algozes é outra das mensagens dolorosas que o filme exibe, algo que, para nossa grande tristeza, tem se tornado cada vez comum nas repúblicas frágeis ao redor do mundo, assim como o nascimento quase semanal de um novo Messias da Destruição nas redes sociais. Esses são os indivíduos que acabam chegando ao poder via gordos financiamentos e via impulso fanático-religioso em seus próprios templos e territórios carentes, para quem viram as costas no momento em que são empossados. Daí para frente, só ganha alguma coisa quem faz parte da máquina de massacre. O restante terá diante de si rituais bizarros, discursos desumanos disfarçados de espirituais, mortes em grande quantidade e piora imensa do que já estava ruim. Christoph Schlingensief era mesmo um profeta.   

O Messias da Destruição (United Trash / The Slit) — Alemanha, 1996
Direção: Christoph Schlingensief
Roteiro: Christoph Schlingensief, Oskar Roehler
Elenco: Udo Kier, Kitten Natividad, Joachim Tomaschewsky, Wellington Jonga, Beauty Chvunga, Alexia Nkomo, Justina Paraiwa, Pretty Xaba, Victoria Madzikura, Conzilia Zinhu, Jonny Pfeifer, Thomas Chibwe, Jones Muguse, Cathbert Mawere, Dietrich Kuhlbrodt
Duração: 75 min.

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