Em 17 de novembro de 1978, um dos mais surreais programas de TV da História dos Programas de TV foi lançado na televisão americana: Star Wars Holiday Special (por aqui, Guerra nas Estrelas Especial). Trata-se de um show de variedades produzido no período de transição entre “o que é Star Wars?” e “nossa, você não viu Star Wars ainda?” que contava com as maiores atrocidades já feitas com a franquia, e olha que essa franquia é CHEIA de atrocidades que, para mim, vão de Caravana da Coragem, passam por A Ameaça Fantasma (raios, a Trilogia Prelúdio inteira, na verdade) e chegam ao inexplicável A Ascenção Skywalker. George Lucas, responsável pelo pontapé inicial que levaria à transmissão do programa de quase 1h40′ de duração pela CBS, percebeu o crime que havia cometido – ou sob certo ponto de vista – permitido que acontecesse e tentou fazer com que a obra desaparecesse completamente, criando um status de lenda para ela.
Eu mesmo, que assisti essa pérola televisiva quando ela foi transmitida por aqui, passei muitos anos achando que havia sonhado ou, talvez melhor dizendo, tido um pesadelo. Lembrava-me de lampejos de imagens, como o da família do Chewbacca conversando na língua deles e a Princesa Leia cantando a música tema composta por John Williams que – o horror, o horror! – ganhou letra para o especial e coisas assim, mas, como ninguém mais falava do assunto, nem mesmo em revistas, e como o programa não era reprisado, arquivei isso na categoria “imaginação fértil de criança” até que, mais de uma década depois, descobri que aquilo tinha realmente existido, o que me levou a cavar bootlegs em VHS do programa e, depois, assisti-lo no YouTube para fazer a crítica.
Um Distúrbio na Força, escrito por Steve Kozak, e quase que simultaneamente transformado em documentário lançado diretamente em vídeo doméstico, é uma valorosa tentativa de, como o subtítulo original deixa bem claro, explicar o como e o porquê do programa ter sido sido o que ele acabou sendo. Ainda que seja perfeitamente possível ler e apreciar o livro sem ter assistido ao especial, tenho para mim que assisti-lo previamente (está facilmente disponível “por aí”) torna a leitura melhor, mais diretamente relacionável. Afinal, Kozak não fez uma mera pesquisa perfunctória para escrever seu livro de bastidores. Muito pelo contrário, ele foi realmente a fundo e mergulhou tanto nos detalhes contextualizadores começando a partir da produção do grande marco cinematográfico que foi o filme em si, depois debruçando-se sobre a inovadora e incrivelmente vitoriosa estratégia de marketing inventada e capitaneada por Charles Lippincott a tal ponto de ela ter se tornado o padrão da indústria dali em diante, até a concepção do especial e cada detalhe de sua produção, lançamento na TV, sua deserdação por Lucas e, claro, o renascimento do interesse pelo programa ao longo dos anos.
Para aqueles que conhecerem muito sobre o filme, talvez o primeiro terço do livro acabe sendo redundante, já que o foco está no lançamento de Star Wars e não no especial, mas teria sido leviano de Kozak se ele não tivesse arriscado afastar os “especialistas na franquia” e pulado direto para o programa de TV. Afinal, é essencial para a compreensão da gênese do especial, compreender as incertezas ao redor do filme e a visão da época por George Lucas que era necessário manter o filme na mente do público pelo maior tempo possível, necessidade essa que é repleta de nuanças interessantes, até mesmo do lado da “vingança mesquinha” que Lucas empreendeu contra os engravatados da Warner que haviam destruído seu THX-1138. Para além de Star Wars, Kozak fornece uma interessantíssima visão sobre o estado da televisão aberta dos EUA na época e a importância dos programas de variedade de forma a justificar a lógica da escolha do formato para o especial, pois mais bizarro que isso, visto por olhos atuais, possa parecer.
Quando, então, o autor entra na concepção do especial em si, ele não deixa pedra sob pedra, começando pelo próprio Lucas que escreveu uma “bíblia” de dezenas de páginas sobre o que ele imaginava, sobre sua insistência no surreal começo em que vemos a família de Chewbacca conversa na incompreensível língua deles por vários minutos sem dublagem, sem legenda, sem absolutamente nenhum apoio para que o espectador entendesse o que estava vendo e ouvindo e, mais ainda, sobre a forma como o visionário criador tratou Lippincott que inegavelmente foi o grande responsável pela transformação de Star Wars de um “mero” sucesso em um fenômeno sem precedentes. Mas não é só Lucas que recebe atenção de Kozak. O diretor canadense David Acomba, primeiro a ser contratado para comandar o especial, é revelado como completamente despreparado para lidar com a organização do programa, atrasando e encarecendo a produção com horas extras para todo o elenco e toda a equipe de apoio a partir do primeiro dia. E não ajudou em nada que o roteiro, as coreografias e até as músicas eram escolhidas e/ou escritas praticamente na hora, sem nenhum tipo de preparação, com os figurinos de alienígenas feitos da maneira mais barata possível sufocando os extras que tinham que vesti-los.
Sem dúvida que Kozak, em sua vontade compreensível de colocar nas páginas do livro todo o resultado de sua vasta e muito completa pesquisa jornalística, talvez tenha exagerado no nível de detalhes que ele oferece ao leitor, mas tenho para mim que seu tom jocoso, por vezes aberta cômico, funciona para criar uma atmosfera leve de leitura, ainda que, por diversas vezes, seja angustiante e desconcertante ver como, em retrospecto, esse completo desastre audiovisual – que contou com todo o elenco principal do filme, por incrível que pareça – era inevitável desde seus primeiros momentos. A mistura de incompetência técnica, com abandono do projeto por Lucas e a falta de visão sobre o verdadeiro potencial de Star Wars, além da inadequação do formato à propriedade intelectual criou a tempestade perfeita, tempestade essa que se tornou folclórica, lendária mesmo, a ponto de sua existência, como mencionei mais acima, só não ter sido completamente apagada do imaginária popular pelos esforços de algumas pessoas que, embarcando muito cedo na então nascente tecnologia do Betamax, gravaram o especial na única vez em que ele foi transmitido nos EUA e que mantiveram as fitas vivas ao longo de mais uma década, popularizando-as por meio de convenções temáticas e outros meios do mundo pré-digital até o advento da internet acessível às pessoas comuns.
Um Distúrbio na Força é uma fascinante leitura sobre um especial que nunca deveria ter acontecido, mas que, ao acontecer, mostrou logo de início o que o descontrole pode fazer com propriedades queridas. Steve Kozak, com o livro, coloca seu nome indelevelmente conectado com uma das maiores aberrações audiovisuais de todos os tempos e, no processo, oferece ao leitor uma visão muito completa sobre os bastidores de um enganosamente pequeno aspecto de uma das obras mais revolucionárias do cinema blockbuster que nasceu de maneira semi-independente e que se tornou o padrão da indústria até hoje em dia.
Um Distúrbio na Força (A Disturbance in the Force: How and Why the Star Wars Holiday Special Happened – EUA, 2023)
Autoria: Steve Kozak
Editora: Applause
Data original de publicação: 15 de novembro de 2023
Páginas: 288