Não é de hoje que filmes e séries de ação são construídos em cima de fiapos narrativos que servem de desculpa para pancadarias, tiroteios e explosões incessantes e também não é de hoje que os espectadores são “treinados” a aceitar qualquer porcaria sob a desculpa do entretenimento puro descerebrado. Com a chamada Guerra do Streaming, isso apenas ficou mais intenso e mais constante, com o sarrafo sendo colocado cada vez mais embaixo. No entanto, por vezes, alguém encontra o equilíbrio exato que mostra muito claramente que esse tão combalido gênero audiovisual não precisa ser sinônimo de idiotices atrás de idiotices para alimentar um público que só parece querer consumir fast food. E, nessa toada, não é realmente uma surpresa de que um desses “alguéns” seja Jeremy Saulnier, diretor responsável por ótimas obras como Sala Verde e Noite de Lobos que, como S. Craig Zahler, simplesmente precisa ter mais oportunidades em Hollywood.
Atrasado pela pandemia e, depois, pela saída de John Boyega, que acabou sendo substituído por Aaron Pierre (da espetacular minissérie The Underground Railroad), Rebel Ridge vem para ajudar a preencher a imensa lacuna do filme de ação com tutano, não só feito de cenas de violência com cortes de milissegundos ou com aqueles planos-sequência falsos de 15 minutos que viraram modinha e que ninguém em sã consciência aguenta mais. Em seu DNA, o roteiro de Saulnier pega emprestada a planta do ex-soldado que chega à uma cidadezinha e é injustiçado pela polícia local de Rambo – Programado para Matar (um clássico da ação bem feita que foi completamente desvirtuado principalmente nos dois filmes seguintes) e constrói em cima disso com muita calma de forma a criar atmosfera e gerar expectativas, somente para que elas sejam constantemente subvertidas.
Esse ex-soldado é Terry Richmond (Pierre) que, chegando em Shelby Springs, é violentamente abordado pela polícia que acaba roubando o dinheiro vivo que carregava para pagar a fiança de seu primo. Sem levantar a voz, Terry sofre abuso atrás de abuso, fazendo de tudo para reaver pelo menos a quantia mínima para impedir que seu primo seja transportado para a penitenciária, até que ele percebe que não fazer nada não o levará a lugar algum. Sim, um clichê, mas um clichê empregado com maestria por Saulnier que tece um roteiro que vai além da mera força policial corrupta sob comando do Chefe de Polícia Sandy Burnne (Don Johnson mais uma vez arrasando nesse tipo de papel) e cria não só um interessante e original pano de fundo para ela agir como age, como faz seus ferinos comentários socioeconômicos sem valer-se de obviedades e textos expositivos.
E, na direção, o mesmo Saulnier recusa-se a fazer mais do mesmo, mas também não tenta reinventar a roda. Rebel Ridge tem diversas sequências de ação, mas nenhuma delas é do “tipo” ou na frequência que se espera, com o cineasta mirando e acertando na construção de tensão, daquela sensação claustrofóbica do proverbial mato sem cachorro, de desespero, de raiva mesmo, ao mesmo passo em que extrai uma atuação marcante de Aaron Pierre com uma intensidade silenciosa que assusta e convence muito mais do que a troglodice mais hilária do que amedrontadora de Alan Ritchson em Reacher. Tudo é feito com olhares, com posturas, com cenas alongadas e poucos diálogos que criam uma bela ambientação e a necessária e inevitável rota de colisão entre Terry, ajudado pela estudante de direito e estagiária do tribunal Summer McBride (AnnaSophia Robb), e Sandy e seus minions, com direito até mesmo a uma breve, mas sempre auspiciosa participação especial de James Cromwell como o juiz local.
São pequenos momentos que, basicamente, fazem do filme o que ele é, já começando pela sequência de abertura ao som aos berros do Iron Maiden (sim, sou parcial quanto ao uso de canções da Donzela de Ferro!), o primeiro confronto entre Terry e Sandy na frente da delegacia (esse aí da imagem), a forma prosaica como Summer lida com um rastilho de combustível e, claro, a cena final que subverte completamente o que se espera de filmes do gênero e que tristemente reconheço que fará muita gente ficar decepcionada. Mas Saulnier é isso, filmes de personalidade que não se curvam às convenções e que procuram entregar o convencional de maneira pouco ou nada convencional e com apuro técnico, olhar criterioso e sempre trabalhando bem motivações e elenco. Rebel Ridge não vai mudar a vida de ninguém, mas é filme de ação como os filmes de ação deveriam ser mais frequentemente feitos, ou seja, sem maneirismos imbecilizantes que Hollywood teima em despejar em nossos colos para entorpecer as mentes de quem só quer pão e circo.
Rebel Ridge (Idem – EUA, 06 de setembro de 2024)
Direção: Jeremy Saulnier
Roteiro: Jeremy Saulnier
Elenco: Aaron Pierre, Don Johnson, AnnaSophia Robb, David Denman, Emory Cohen, Steve Zissis, Zsané Jhé, Dana Lee, James Cromwell
Duração: 131 min.