Escrever uma HQ para todas as idades – ou, pelo menos, para quase todas – não é uma tarefa fácil se o objetivo for trabalhar conceitos e premissas mais adultas de maneira mais leve. De certa forma, espera-se que a liberdade maior dos quadrinhos abra mais espaço para palavrões, violência e outros artifícios para atrair um público que, ironicamente, tem se tornado cada vez mais insensível, o que exige uma escalada gigantesca e infinita do nível de explicitude visual, o que muitas vezes significa que a história se torna apenas um detalhe em meio às mais originais maneiras de se matar alguém ou alguma criatura. Apesar de não procurar ativamente obras da Nona Arte com abordagem para adolescentes ou, como é o caso aqui, Teen+, A Última Sereia chamou-me atenção por diversas razões não exatamente ligadas à classificação etária.
A primeira delas é que o coreano-americano Derek Kirk Kim estava fora do cenário de quadrinhos há mais de 10 anos, desde que lançou o volume 2 de seu Tune, com arte de Les McClaine, a ponto de eu só não ter esquecido dele completamente em razão de seu nome muito característico e chamativo. Depois, eu costumo dar muito valor quando um ilustrador e/ou roteirista arregaça as mangas para jogar nas duas posições, algo raro em publicações ocidentais. Além disso, o formato escolhido, mais quadrado do que retangular na vertical, lembrando muitas das publicações do selo Black Label, da DC Comics, é imediatamente sedutor, nem que seja pelo mero inusitado da coisa. E ajuda que, pessoalmente, gosto bastante de experimentar esses formatos alternativos nos quadrinhos, com o meu favorito, até o momento, sendo o horizontal, ou paisagem).
E, claro, tem a premissa, que é basicamente a inserção de uma sereia e de sua amiga Lottie, uma axolote (uma salamandra branca que permanece na “fase de larva” mesmo quando adulta), em um armadura “Transformer” estilo mecha em um cenário pós-apocalíptico à la Mad Max, com direito a monstros e mutantes. Pelo menos para mim, só isso já seria o suficiente para conferir o material, sem que fossem necessários os quesitos dos parágrafos anteriores. A alvissareira junção de tudo em um pacote só foi um imediato “não tem como, eu preciso ler esse negócio” que, então, me levou à presente crítica do primeiro arco de seis edições de uma história que, segundo o autor, deverá durar, se tudo der certo, por 25 ou 30 no total.
A história é simples como eu a descrevi acima. Uma sereia que só ganha nome na última edição cruza uma Terra desértica e devastada por razões não mencionadas em um futuro não especificado usando uma poderosa armadura H.V.A.C., sigla em inglês de Câmara Veicular Aquática Híbrida, cuja cabine envidraçada em forma de bolha precisa ter a água trocada de tempos em tempos para permitir que seus habitantes continuem respirando. Quando a história começa, a água já está precisando ser trocada e todo o foco está em achar alguma caverna com um aquífero subterrâneo contendo água ainda limpa e, de preferência, alimento na forma de peixes e outros pequenos animais. O que segue, daí, é, claro, uma sucessão de clichês cuidadosamente utilizados, inclusive a chegada de um aliado na forma de um humano chamado Torque que veste uma armadura escura, capa dramática com direito a capuz e um cajado de mil e uma utilidades.
O objetivo da sereia, ou seja, a razão de sua jornada, é a busca da Terra Prometida, no caso dela o oceano (presumivelmente o Pacífico, pois a única indicação de onde ela passa são as ruínas da icônica ponte Golden Gate, em São Francisco), ainda que pouquíssimos elementos de seu passado sejam oferecidos nesse começo por Kim. Torque, seu protetor, é ainda mais enigmático, ainda que ele genuinamente pareça querer proteger a sereia por puro altruísmo, algo que sempre duvido e que, portanto, teremos que esperar para ver. E é assim que o arco narrativo caminha, ou seja, fazendo o básico de maneira bem feita, com a arte inspirando-se em animes para deslumbrar o leitor com uma paleta de cores vibrante, por vezes etérea, com a protagonista estranhamente lembrando-me de Alita, e movimentação dinâmica, ainda que por vezes “borrada” demais para o meu gosto, e personagens carismáticos, mas ainda pouco desenvolvidos.
A manutenção dos segredos por trás do que vemos na superfície é uma escolha deliberada de Kim, claro, mas ela traz um ônus grande, que é manter a narrativa relevante basicamente em razão de uma sucessão de ameaças, sendo que apenas uma delas ganha relevo suficiente para demandar uma pancadaria protraída no tempo, com o restante sendo resolvido de maneira quase instantânea. O autor sacrifica desenvolvimento narrativo em prol da ação e para jogar explicações e contextualizações mais para a frente, como é comum acontecer em arcos inaugurais de séries em quadrinhos, mas que, em A Última Sereia, deixa uma sensação de vazio, de que pouco aconteceu ao longo das seis edições para além do estabelecimento das bases narrativas e os rascunhos da dupla principal.
O foco em um público mais jovem fica evidente até mesmo pela pureza e inocência da sereia e da fofura da salamandra, além da completa ausência de violência explícita – há violência, vejam bem, mas ela não ganha destaque – e vocabulário mais, digamos, apimentado. Isso na ambientação escolhida e com a premissa em questão é causa suficiente para leitores de quadrinhos de todas as idades pelo menos levantarem a sobrancelha. A Última Sereia acaba sendo uma muito bonita diversão juvenil básica que, diria, promete desenvolvimentos interessantes em futuros arcos.
A Última Sereia – Livro 1 (The Last Mermaid – Book 1, EUA – 2024)
Contendo: The Last Mermaid #1 a 6
Roteiro: Derek Kirk Kim
Arte: Derek Kirk Kim
Editora: Image Comics
Datas originais de publicação: 06 de março, 03 de abril, 08 de maio, 05 de junho, 03 de julho e 28 de agosto de 2024
Páginas: 202