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Crítica | Ascensão do Escolhido, de Ezequias Nogueira Guimarães

Liberdade e opressão num mundo em ruínas.

por Fernando JG
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É sintomático que o romance contemporâneo venha à luz sob a faceta de um distópico. As preocupações nas quais se baseiam a escritura de uma obra, hoje, são variadas e acompanham a evolução da cronologia da História. Um romance é sempre marca de seu tempo e das questões de seu entorno. Data do fim do XIX as primeiras tentativas de distopias emergidas em meio a crise social. O longo século XX é, no entanto, o berço de todas elas: um mundo caótico, realidades cruzadas, Estado em desequilíbrio, fraturas sociais, totalitarismos… São muitas as razões que fundam esse escapismo de gênero a que se cunhou chamar de distopia. E por óbvio que a complexidade e a aporia do mundo pós moderno e contemporâneo teria como tendência o romance distópico. É a maneira encontrada para expressar a opressão do real. 

De todo modo, ainda que não me seja familiar esse universo, adentrá-lo é sempre divertido pela mistura de mistério e estranhamento provocados pela exploração do incógnito que age como princípio mediador de praticamente todas as obras que se propõem a trabalhar um enredo tal. É nesse submundo que se situa o livro recém publicado de Ezequias Guimarães, a primeira parte de uma trilogia intitulada Trilogia do Escolhido. Duzentos anos após o Acordo estabelecido em razão da Guerra que destruiu a civilização, o mundo foi dividido em Zonas de sobrevivência feitas para realocarem os que sobraram. Agora, nesse fragmento do que restou, três jovens tentam encontrar seus próprios caminhos na nova civilização ao mesmo tempo em que confrontam as difíceis questões próprias ao amadurecimento e à subjetividade de cada um.

Nesse mundo pós apocalíptico, as leis operam como organização social e opressão das classes. Tudo o que há tem por finalidade cercear a liberdade individual, provocando um efeito de medo e horror diante das coisas mais simples como sair à noite ou conversar com um amigo na rua. A gravidez é um crime passível à prisão perpétua e a vida, como em The Handmaid’s Tale, é uma constante clausura. A ideia de um mundo em ruínas, da maneira que coloca o romancista, atrela-se a um duplo sentido narrativo: ao mesmo tempo em que é a decadência de um mundo aos pedaços, é igualmente um lugar em cuja degradação moral é a regra e a ética, maleável, só existe em benefício de um grupo dominante. As instituições representadas pelo Domínio da Fé enfrentam uma antítese de valor: seu moralismo é antimoral e a superficialidade de leis arbitrárias conduzem todo o sistema opressivo. Quero dizer, afinal, que não é só um problema físico de uma geografia destruída, mas também um decadentismo de valores e de espírito. Compreendo a frase de Amanda: “Em um lugar onde o medo é a melhor defesa, fechar os olhos para o óbvio era a maneira ideal de evitar problemas” como aquela que melhor resume as motivações do romance. Tudo se encontra nessa sintaxe. 

Embora o que eu venha a dizer seja majoritariamente positivo, há alguns pontos que carecem de maior atenção. A primeira mais evidente refere-se às revisões textuais, falha comum em primeiras edições mas que de modo inevitável aviltam o material. Parte importante de toda obra literária são as edições que têm a capacidade de melhorar ou piorar um determinado texto. Por isso, tantos autores revisitam, a cada nova edição, seu próprio material, alterando aquilo que lhe é propício. Há também alguma fragilidade na psicologia das relações amorosas, como em Amanda e mesmo em Oscar. Esse aspecto comento mais abaixo de maneira mais detida. De fato, há alguma imperfeição que me aparenta descuido da forma e da redação, embora não devamos nos prender a isso a princípio. Mas é importante relatar que o defeito da forma pode diminuir o mérito de algumas obras. Machado de Assis, em revisão crítica a obra de Fagundes Varela, retoma que a forma ilumina o conteúdo, isto é, o bom cuidado com a estilística e as correções são capazes de engrandecer um enredo ou mesmo de torná-lo enfadonho. A linguagem é a principal ferramenta em literatura, portanto, é dela que sai a glória ou a queda do produto literário. 

Fato é que o romance é bem iniciado com uma convenção literária típica da tradição, isto é, in media res, e logo somos jogados num deserto de estranheza onde se tem de tudo, mas não se tem nada. É a experiência de um caos originário. É como acordar em um futuro desconhecido, em um lugar cujas leis são outras e no qual o nosso comportamento habitual já não serve. Um derramar de ideias ainda indefinidas, como “Designação”, “Purificação”, “Irmandade”, são expostas livremente sem explicações prévias. Claro. O recurso literário a que se chama “in media res”, utilizado de maneira inaugural por Homero e de quem somos eternos alunos, oferece a licença poética para que não se explique, num primeiro momento, os termos de um debate que já está em curso. Não é que o universo do romance se altera aos poucos de uma realidade para outra. Ele já se encontra alterado e por isso não carece de definições iniciais e gera curiosidades. A primeira coisa que penso é: o que significa tudo isso? E logo tenho vontade de continuar a descobrir, embora, pelo contexto, alguns conceitos já comecem a fazer sentido.

O texto é escrito em primeira pessoa a partir dos personagens da trama. Algumas médias divagações dão a ver as inquietudes e o perfil psicológico dos personagens, que são aprofundados capítulo a capítulo. Apesar disso, a que melhor teve seu arco narrativo-psicológico desenvolvido é Amanda, cujas falas dão a ver uma subjetividade caótica que se explica passo a passo até compreendermos o porquê age da maneira pela qual age. Ela carrega determinada rebeldia típica. É fácil reconhecê-la por sua consistente insatisfação. É curioso acompanhar que um sujeito tão livre em si mesmo, sem aparentes pudores, carrega uma culpa cristã no seio de sua moralidade. Não exatamente cristã pois não se estabelece nesses termos a crendice no romance. Mas há, por exemplo, uma espécie de rejeição imediata da volúpia após o ato sexual, fazendo-a enxergar a si mesma como suja. O que é isso: um feminino demonizado? Culpa? Julgamento social? Um reflexo do meio que a condiciona a se ver como impura? Há hipóteses a serem feitas, afinal, o feminino é historicamente um objeto complexo. O sexo, para Amanda, é um misto de prazer e dor,  um escape de uma realidade insustentável. 

A construção psicológica dos personagens apresenta, no entanto, alguma fragilidade que não se sabe bem se é da idade juvenil a que pertencem ou se é um problema da própria narrativa. Amanda e Oscar, ao desenvolverem suas relações amorosas com John e Gabriel respectivamente – e mesmo depois quando Amanda se envolve amorosamente ao fim do romance com outro rapaz -, apaixonam-se perdidamente no instante do beijo, sem a necessária densidade prévia que exige o ato de se apaixonar por alguém. No instante estranho do beijo entre Gabriel e Oscar, aquele se torna o “porto seguro” e o ponto de fuga de Oscar, como se suas relações já estivessem aprofundadas num nível de uma paixão para que Oscar pudesse ter aquele sentimento de “não vivo sem você”. A impressão que causa é a de uma ansiedade para que o ato do amor se consuma. Mas o romance, pela extensão de que tem, não necessita de tal pressa, de modo que seriam melhor desenvolvidas as relações amorosas no curso do próprio enredo, fazendo-os apaixonar paulatinamente, provendo um efeito de verossimilhança para o leitor. O amor precisa sempre comover e nos provocar afetos. 

Evidentemente, a paixão à primeira vista ou ao primeiro beijo existe, mas há um abismo que separa a paixão de primeiro instante a uma devoção abissal pelo objeto de desejo. Essa forma de amor que é desenvolvida entre os personagens me parece muito sentimental e apressada para pouco desenvolvimento psicológico e afetivo entre eles. Seria necessário que desenvolvessem algo a tal ponto que então pudesse ser pronunciado o sintagma afetivo de que “você é o meu porto seguro”. Sem um adequado desenvolvimento afetivo e seguro, a vida amorosa dos protagonistas cai num pieguismo inocente típico dos young-adults que enchem as prateleiras das lojas de livros. 

Apesar disso, o amor é o aspecto central do romance. Mais um pouco e seria um romance de formação bem característico, onde a juventude tenta florescer em meio ao caos. Talvez eu esteja sendo duro demais ao não perceber que a paixão é uma necessidade urgente em um momento de crise, como em Casablanca (Michael Curtiz, 1942). Talvez a frase proferida pelo personagem de Humphrey Bogart à sua amante no filme de 1942 explique algo: 

With the whole world crumbling, we pick this time to fall in love” 

É possível pensar que essa pressa do romance evidencie um desespero por um ponto de fuga diante de um mundo que é todo ele autoritarismo e mandonismo, de modo que o amor e a ânsia por amar se converta no elemento primordial da subjetividade humana para enfrentar situações e momentos de crise e ruína. O amor salva. Se Oscar é um jovem que ainda está aprendendo a amar e Elizabeth sofre de maneira arrasadora as consequências mais diretas da paixão, Amada é a personagem em que o amor é um misto de dor e prazer. Assombrada por uma culpa “cristã” pelo sexo, ela entrega-se à volúpia do gozo ao mesmo tempo em que renega o prazer como algo sujo e indigno. 

A narrativa é polifônica e alguns pontos de vista são expostos ao longo da fábula. Além dos protagonistas, temos a excelente surpresa de acompanhar algumas outras perspectivas, como a de Gabriel, a do Supremo, a de Tasha, entre outros. Num momento em que não se espera que isso aconteça, abre-se um capítulo a partir do olhar de um outro personagem, esclarecendo pontos e sobretudo o mais importante: interligando todo o romance a um só núcleo. Os cruzamentos de trama são interessantes. A dado momento, todos eles se cruzam no enredo e tudo faz sentido. Se antes estavam separados e cada um com sua narrativa pessoal, logo após o meio do romance os observamos pelas lentes de uma única câmera, em um único espaço-tempo, justificando toda a razão narrativa da obra de Ezequias, que consegue, sem esforços, com bastante domínio e fluidez, unir as pontas em um todo maior. 

Embora tenha muito a dizer, não me parece justo que gaste todo repertório no volume inicial da trilogia. Os lugares estão colocados, o universo temático estabelecido. É sufocante, opressivo, misterioso, por vezes imoral e contém todos os elementos mais caros de uma ficção distópica. O novo romance deixa espaço para aprofundar questões relativas à administração da Nova Arcádia, além de continuar a história interrompida dos personagens que fogem rumo a uma liberdade incerta. Fica a questão: o que é esse mundo exterior? Há vida depois do muro da cidade? Ezequias refaz o mito platônico da caverna numa tentativa de trazer à tona determinadas cegueiras e alienações impostas pelo meio social, mas que, longe de serem naturais estas alienações, acabam despertando o anseio humano pela liberdade diante de um sistema opressivo. O romance finaliza com uma imagem linda de uma fuga do Aglomerado em que vivem, imagem esta que representa tudo isso a que me reportei anteriormente. É a imagem da liberdade. O mundo em ruínas construído pelo romancista se parece com o nosso, mas enquanto vivemos de escombro em escombro, na ponta da caneta de Ezequias talvez haja a possibilidade menos cruel de inventar um mundo ideal sobre os entulhos que se ergue o novo mundo. 

A Ascensão do Escolhido (Brasil, 2023)
Autor: Ezequias Nogueira Guimarães
Editora: Editora Frutificando
Páginas: 360

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