Se vivos, porém esmagados e perturbados,
oprimidos por dores infinitas,
Kannon, com o poder de sua sabedoria maravilhosa,
poderá salvar este mundo do sofrimento!
Perfeito em poderes sobrenaturais.
Praticando amplamente com sabedoria e tato.
Nas terras do universo não há um lugar
onde não se manifeste.
Todos os estados negativos da existência,
inferno, fantasmas, animais,
sofrimentos de nascimento, velhice, doença e morte,
Todos gradativamente serão terminados!
Verdadeiro observar, observar sereno,
observar de sabedoria de longo alcance,
observar de misericórdia, observar de compaixão.
Tanto esperado, tanto esperado!– Sutra da Flor de Lótus da Lei Maravilhosa (Cap. XXV) [Poema do Portal Universal de Kanzeon Bodisatva]
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Primeira parte
O notável e saudoso diretor italiano Bernardo Bertolucci (1941 – 2018) tem em sua cinematografia filmes de temáticas diversas, passando pelo político O Conformista (1970), até o provocante e cheio de polêmicas O Último Tango em Paris, de 1972, chegando ao seu mais premiado filme O Último Imperador (1987), vencedor de premiações como Globo de Ouro, BAFTA e Oscar. Dono de um profundo interesse pelas relações sociais humanas, sejam elas pessoais, interpessoais ou existenciais, podemos ver ao longo de sua obra um tema em comum bem característico, a busca por sentido e por si mesmo em meio ao inevitável sofrimento da condição humana no mundo manifesto. Contudo, longe de soar onírico como Tarkovski ou melancólico como Bergman, Bertolucci se expressa de forma mais pragmática e realista, mas será em seu filme O Pequeno Buda de 1993, que ele chegará mais perto de uma possível reflexão para o fim do desespero que rondava e rondará suas personagens ao longo de sua obra e vida.
Parte da nomeada trilogia oriental (que ainda conta com o já citado O Último Imperador e ainda com o desértico O Céu que nos Protege) aqui o autor busca dialogar com a mística do budismo tibetano, como o próprio nome do filme nos indica, com alguns pequenos apontamentos e paralelos com a atribulada história do Tibet junto a China maoísta, em sutis ecos das narrativas advindas do último imperador chinês. Contudo, mais afastado das contradições políticas daquele filme, o diretor se volta mais diretamente à condição humana, que não é menos complexa, contudo. A história pensada pelo próprio diretor e roteirizada por Rudy Wurlitzer e Mark Pepleo, se inicia quando o Lama Norbu e o monge Kenpo Tensin viajam aos EUA em busca da criança que pode ser a reencarnação de Lama Dorje, importante líder religioso dentro do monastério em que Norbu vive e ensina as práticas budistas, localizado no Butão. A trama segue com o encontro de ambos os personagens com Lisa Conrad, vivida por Bridget Fonda, e seu filho Jesse Conrad, interpretado por Alex Wiesendanger, quem eles acreditam ser o mestre reencarnado. Desse momento em diante, o garoto começará a aprender sobre a história de Sidarta Gautama, o Buda histórico, em uma excelente interpretação de Keanu Reeves.
Em um primeiro momento soa estranho, e talvez até mesmo ofensivo, que o Buda seja feito por um homem branco e que o ator soe destoante, ao menos fisicamente, em meio aos outros atores butaneses e indianos; contudo, entenderemos o motivo mais à frente, no desenrolar da narrativa. Compondo o trio familiar teremos ainda o pai, Dean Conrad, interpretado pelo cantor Chris Issak, que terá, mais adiante, na história, um papel bastante relevante, ao qual o ator se entrega de forma excepcional — e recebeu uma incompreensível indicação ao framboesa de ouro na época.
No decorrer da trama, somos apresentados ao mundo distante e frio do modo de vida e sonho americano e burguês, baseado intimamente em ter, possuir, onde o pai tenta sobreviver e ajudar a manter sua família junto de sua esposa uma professora de matemática. O ponto de virada se dará com o suicídio de um amigo próximo, cometido por conta de sucessivas perdas financeiras, abalando-o de forma decisiva, abrindo as possibilidades espirituais em sua vida através do caminho budista. No desenrolar da história, seremos introduzidos à narrativa budista do nascimento de Sidarta durante as leituras de Jean, do livro que os monges lhe presentearam durante uma visita.
O mito se inicia quando a rainha shakya Maya dá a luz a seu primogênito em meio a uma viagem. Ficamos sabendo que dez anos antes, em seus sonhos, ela teria sido visitada por um elefante branco de seis presas que teria previsto a chegada do redentor do mundo. No presente, a criança prometida ganha o nome de Sidarta, que significa ‘’aquele que alcança seus objetivos’’. Em seu reino, durante a cerimônia para comemorar a chegada do príncipe, o pai de Sidarta é visitado por um Sábio que a muito tempo não era visto. Ele informa ao rei que seu filho será um homem de grande sabedoria e importância espiritual, mas o monarca se ira, pois deseja que o filho seja um grande guerreiro e regente como ele e, naquele momento, decide fechar Sidarta nas paredes do palácio, onde ele conheceria apenas a felicidade, a riqueza e jamais a dor, sem saber que, assim, despertaria a compaixão infinita do filho pelo sofrimento humano anos mais tarde, auxiliando-o em sua trajetória de iluminação.
De volta aos EUA, na trama, impulsionado pela perda recente e desiludido com sua vida focada majoritariamente no trabalho, Dean aceita levar o seu filho ao Butão, após o pedido dos monges, de modo a identificarem se ele realmente é a reencarnação de Lama Dorje, mesmo que um tanto relutante e incrédulo sobre essa possibilidade. Nesse momento, o filme sai do ocidente e somos imersos em uma nova realidade, em um mundo bem diferente do estadunidense. Enquanto espectadores, somos iniciados nessa nova perspectiva de realidade e de seus caminhos.
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Segunda parte
Antes de darmos prosseguimento à análise da narrativa e de seus simbolismos, acredito que seja interessante, para aqueles que não sabem, uma pequena contextualização sobre o budismo. Originário da Índia e fundado por Sidarta Gautama, o buda histórico, no século V antes de Cristo, muitos o compreendem como uma religião; contudo, nomeá-lo dessa forma ou mesmo como uma filosofia de vida não é a melhor das direções. Creio que uma forma melhor de entender o budismo é como uma senda espiritual, muito por conta da ausência de um ou mais deuses centrais, pois o enfoque está centrado em percorrer o darma do Buda, ou seja, através dos preceitos e métodos estipulados por Sidarta e pelos mestres de cada segmento budista, alcançar a iluminação e auxiliar a humanidade a encontrá-la também, através da superação do ego, da mente e da ilusão das formas materiais do mundo manifesto. Existem várias escolas ou correntes budistas, cada uma com um enfoque específico em um ensinamento, inclusive havendo as que desconsideram a existência de divindades, como os segmentos de zen budismo; e aquelas que possuem um enfoque mais místico e esotérico, no qual as divindades não estão acima dos homens, mas os auxiliam na sua busca por iluminação, como o budismo tibetano e o budismo shingon.
A primeira dessas escolas foi chamada de theravada ou escola dos anciãos, focada na libertação individual do sofrimento através do sacerdócio e, posteriormente, surgiram as escolas mahayanas (grande veículo), focada na libertação coletiva do sofrimento, como a citada escola zen. Há também as correntes tântricas ou esotéricas, as vajrayanas, sendo que uma delas, a tibetana, é a escola representada aqui em O Pequeno Buda. Ela se diferencia das outras correntes por ter integrado os ensinamentos budistas com o xamanismo bon, próprio da região dos Himalaias, e de ser a única com a presença dos professores de darma, ou lamas, que não são necessariamente monges.
Apesar de não possuir deuses, possui o conceito de bodisatva: pessoas elevadas que auxiliam a humanidade a se libertar da roda do samsara, o ciclo infindável de reencarnações. Um outro ponto a ser notado e que é útil para a compreensão desses conceitos no filme é a ideia budista de que somos todos parte de um Todo maior, presos pela ignorância de nossa mente aos sentidos e, por isso, todas as formas são ilusórias e passageiras; portanto, devemos superar essa ignorância e abandonar o ego através da compaixão universal. Existem outros conceitos-chave para o caminho búdico como os três tesouros, as quatros joias e o caminho óctuplo. Para um estudo maior, indico o livro A Tradição do Budismo. de Peter Harvey.
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Terceira Parte
Voltando à história, todo o segmento passado no Butão vai envolver o encontro com outras duas crianças que podem ser a encarnação de Lama Dorje; Gita (Greishma Makar Singh) e Raju (Raju Lal). Neste momento fica claro que a ideia central da obra é colocar o homem ocidental, representado por Jesse, para aprender, com humildade, o caminho do Buda. Existem alguns paralelismos imagéticos disso na obra, quando Sidarta conhece o mundo para além das portas de seu palácio e conhece o envelhecimento, a doença, a morte e o sofrimento. O simbolismo dele pegando as cinzas de um cadáver recém cremado se ligará à mesma descoberta de Jesse, ao se despedir das cinzas de seu Lama, no final da obra. Ao colocar Sidarta interpretado por Keanu Reeves, Bertolucci trouxe um bom investimento financeiro para a produção do filme e também criou um avatar do mundo ocidental moderno que se abre para uma nova dimensão espiritual, mesmo após ter acontecido o que o filósofo Frederick Nietzsche chamou de a ‘’morte de Deus’’ no mundo moderno, o que cabe perfeitamente na dinâmica de nossa realidade atual, construída pelo capitalismo tardio e pautada na ostentação (seja ela material ou emocional) naturalizadas pela era das grandes redes sociais e das Big Techs. Algo que ressoa o Kali Yuga indiano.
Destaca-se a cinematografia do mestre Vittorio Storaro, principalmente na construção de uma atmosfera melancólica na casa dos Conrad, através do uso de luzes com temperatura fria, fazendo uso de tons brancos e azuis que junto a um cenário grande (mas vazio), representando a estaticidade emocional da vida do casal. Em contraponto, temos as sequências da história do Buda os tons amarelados e as luzes quentes, douradas, brilhantes, representando o caminho de iluminação. Friso aqui a sequência da luta do Buda contra Mara e suas filhas, que representam o apego dos sentidos à ilusão da forma e da matéria, onde temos as melhores sequências da obra, traduzindo de forma perfeita a vitória de Sidarta sobre as ilusões, tornando-se iluminado, o Buda.
São relevantes também a montagem bem realizada de Pietro Scalia e a trilha sonora do saudoso Ryuichi Sakamoto, que contribuem, junto à mise–en–scéne de Bertolucci, para construir um filme sensível que, longe de dogmatismos, tenta apresentar uma nova proposta de caminho espiritual ao mundo ocidental. Como é dito no final do filme por Lama Norbu, ao se despedir das três crianças que são reveladas como a reencarnação de Lama Dorje: “espírito, fala e corpo são um só e agem como um só“. Acredito que esse é o principal ensinamento de O Pequeno Buda. Uma ótima película que, com toda certeza, vale a pena ser vista.
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Para quem se interessou por este assunto, é recompensador ler o ótimo romance Sidarta de Hermann Hesse, e o mangá Buda, de Osamu Tezuka.
O Pequeno Buda (The Little Buddha, França, Reino Unido, Liechtenstein, Itália, 1993)
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Bernardo Bertolucci (história), Mark Peploe, Rudy Wurlitzer
Elenco: Keanu Reeves , Ruocheng Ying, Chris Isaak, Bridget Fonda, Alex Wiesendanger, Raju Lal, Greishma Makar Singh, Khyongla Rato Rinpoche, Geshe Tsultim Gyelsen, Jo Champa, Jigme Kunsang, Thubtem Jampa, Surehka Sikri, T.K. Lama, Doma Tshomo, Kanika Pandey
Duração: 140 min.