A tradição nagô baiana é um dos pilares que sustentam a rica representação cultural da Bahia, um estado brasileiro marcado por sua diversidade étnica, religiosa e histórica. Ela é derivada das práticas dos povos nagôs, trazidos da África para o Brasil durante as trevas do nosso período colonial, ainda com desdobramentos na contemporaneidade, como podemos acompanhar ao longo da leitura de A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento, do escritor e professor baiano Gildeci de Oliveira Leite. Complexa e multifacetada, essa tradição se manifesta em rituais, danças, músicas e expressões artísticas que cultivam a identidade cultural das raízes dos nagôs, um dos grupos étnicos da nação yorubá que antes de serem trazidos como escravizados, possuíam uma rica cultura que incluía uma cosmologia complexa, um sistema de crenças espiritual e uma forte conexão com a terra e os ancestrais. Ao chegarem ao Brasil, muitos desses elementos foram adaptados e hoje permanecem presentes, diante dos desafios e obstáculos de uma sociedade cínica e utópica quando o assunto é intolerância religiosa e a problemática concepção de democracia racial proposta por Gilberto Freyre no século passado, algo que pasmem, ainda é parte do sistema de crenças de muitos alienados que acreditam veementemente que vivemos harmoniosamente numa “comunidade imaginada”.
Um dos elementos mais significativos na tradição nagô é a musicalidade, que permeia todas as suas práticas rituais. Os toques de atabaques e os cantos que evocam os orixás são essenciais para estabelecer um diálogo entre o mundo físico e o espiritual. As músicas não são apenas uma forma de entretenimento; elas carregam a memória coletiva dos ascendentes, celebrando suas vitórias, lutas e resiliência. Esta conexão musical reflete um profundo respeito pelas origens, e sua continuidade representa uma forma de resistência contra a tentação de assimilação cultural imposta pela sociedade dominante, que por sinal, se apropriam constantemente do acervo nagô para criar suas composições e produtos de entretenimento. O candomblé, enquanto religião de matriz africana, não é apenas uma prática religiosa, mas um espaço de resistência onde a cultura africana é reafirmada. Em um contexto historicamente marcado pela opressão e discriminação, as comunidades de candomblé se tornaram redutos de resistência e identidade. Os terreiros funcionam como núcleos de sociabilidade e apoio mútuo, onde as tradições são ensinadas e preservadas, reforçando laços comunitários que são vitais para a sobrevivência cultural. Como podemos acompanhar ao longo de A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento, nesse espaço, os valores nagôs são transmitidos de geração em geração, através de rituais que honram os orixás e fortalecem a herança africana.
Esses rituais são conhecidos por suas coreografias vibrantes, vestimentas de cores vivas e a presença marcante dos sacerdotes e sacerdotisas, guardiões desse legado cultural rico e expressivo, exaltado pelo escritor em todos os capítulos de seu livro. Em sua segunda edição, lançada pela editora baiana Segundo Selo, A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento apresenta ao leitor uma capa impactante, simples, mas bem conectada com a composição literária do autor. Assinada por Welber Trindade, a vitrine do livro é tão misteriosa quanto o título, algo pensando estrategicamente para instigar os leitores. Ao longo de suas 197 páginas, acompanhamos a trajetória de personagens com nomes ironicamente bíblicos, inseridos numa curiosa dinâmica de intolerância religiosa, malandragem, corrupção e mercantilização da fé. Ao ler, flertei com as cenas traçando ilações constantes com algumas tramas de Jorge Amado, mas João Ubaldo Ribeiro, em especial, no gigantesco Viva o Povo Brasileiro, foi o escritor que resgatei enquanto atravessava as 21 cenas do livro de Leite. Como diz T. S. Eliot, “ninguém escreve sozinho, pois ao escrever, acionamos todo o nosso acervo”. As considerações dessa citação, debatidas durante as carismáticas e devidamente delineadas aulas da professora Ligia Teles, do Programa de Mestrado da Universidade Federal da Bahia, me marcaram para sempre. E, na leitura do romance em questão, me fizeram perceber como o autor possui um estilo próprio, mas navega nas caudalosas águas da nossa memória literária para estabelecer o seu tom e a sua voz enquanto escritor atuante e engajado.
No limiar do real e do ficcional, pois muitas cenas de A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento parecem “aquela situação” que testemunhamos em alguns momentos no bojo de nossas próprias famílias, ou na vizinhança, o livro se passa entre práticas gananciosas de personagens obcecados por riqueza material, mergulhados em situações constantes de hipocrisia. Maria, totalmente caótica e desconectada com aquela que foi, segundo os relatos bíblicos, a dona do ventre acolhedor do menino Jesus, se apresenta ao longo da narrativa como uma vigarista. Entre assassinatos e exaltação do racismo, a emblemática figura ficcional não possui qualquer baliza para equilibrar os seus anseios de ascensão social. Como dito pelo próprio autor em entrevistas, o grandioso “Deus” no livro é a conta bancária. Durante o livro, por sinal, racismo, crime, corrupção e mercantilização da religião, elementos já mencionados, se estabelecem como palavras-chave para a bússola de compreensão da narrativa, juntamente com a sexualidade dos personagens.
Ao ler, dialoguei com outros pares acadêmicos que tiveram a oportunidade de receber o exemplar autografado diretamente das mãos do autor e me questionei: por qual motivo os corpos femininos são delineados em pormenores nas cenas, enquanto os corpos masculinos não ganham sequer um destaque? Seios, genitálias, posições sexuais. O surpreendente e irônico encontro lésbico entre duas personagens é relatado cinematograficamente. Mais uma vez, não é algo que atrapalhe a importância dos debates ou o estilo próprio de Gildeci Leite, mas é um tópico que pode suscitar debates sobre um problemático processo de hipersexualização dos corpos femininos. Para compreender, é preciso examinar o lugar de fala de Gildeci Leite, numa travessia deliciosa que, filosoficamente, vai além do livro. Bom para o autor, alguém que abre espaço para debates em torno de sua publicação e bom para o nosso exercício cidadão de reflexão acerca de questões pontuais que permeiam cotidianamente a nossa sociedade.
A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento inicia com capítulos mais curtos, pavimenta caminhos mais extensos na segunda metade e, estruturalmente, volta aos trechos menores, mais próximo ao final, uma escolha que não reduz o nível literário da trama e dos personagens, mas pode ser um grandioso desafio para leitores inquietos, não exatamente preguiçosos como se diz equivocadamente por ai, mas os acometidos pela neurodiversidade. Como parte integrante do vestibular, um espaço acolhedor para muitos jovens que sofrem com os impactos da ausência de leitura como ato de cidadania, os capítulos mencionados podem dificultar a cadência da leitura. Talvez, para uma segunda edição, os capítulos mais extensos poderiam ser reduzidos, para atender uma demanda além do ciclo acadêmico. Numa era de excesso de estímulos, contingente exorbitante de diagnósticos de pessoas com dificuldades de concentração, capítulos como o 15°, por exemplo, que ocupa algo em torno de 20% do livro completo, podiam se reorganizar para atender uma fatia maior do nosso parco mercado de leitores, na atual era onde até mesmo as legendas de postagens nas redes sociais não são lidas. Como professor de Ensino Superior e Ensino Médio, observo constantemente os comportamentos e fenômenos de sala de aula e, ao ler o romance, senti que mesmo que haja liberdade artística do autor ao escrever o seu texto e fazer as suas escolhas, pensar no leitor também é um caminho para o momento posterior ao ato de composição, afinal, é um prazer escrever como queremos, mas quem escreve quer ser lido.
Ademais, as questões estruturais do romance são pontos que precisam de destaque, pois impactam no desenvolvimento da leitura. A inclusão do glossário é muito pertinente, pois permite que aqueles que desconhecem determinadas terminologias possam ampliar os seus conhecimentos acerca do legado e impacto da contribuição africana para a tessitura cultural de nossa sociedade. Na diagramação de Lívia Sousa, o uso dos galhos de árvores em cada paginação imprime ao livro um requisito lúdico, como se a perspectiva da capa acompanhasse toda a jornada das numerosas cenas da publicação. Em alguns trechos, por sua vez, há erros topográficos que brecam a leitura daqueles mais exigentes, questões de revisão que não tiram o valor literário de A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento, mas se evitados, poderiam extrair a pedra no caminho da leitura, parafraseando parodicamente o nosso poeta Carlos Drummond de Andrade, numa observação que abre precedentes para outras observações. Gildeci Leite é muito cuidadoso ao colocar em notas de rodapé, as menções ao cancioneiro brasileiro e do candomblé. Ele cita e registra as referências aos grandes nomes da MPB, tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre outros, mas quando utiliza em um período curto, mas fechado, lá pelo meio do quinto capítulo, o famoso “tudo nosso, nada deles”, uma das canções de pagode baiano de resistência, do polêmico Igor Kannário, não há menção alguma em nota de rodapé. Terá sido inconsciente? São perguntas que ficam em aberto, justamente como uma narrativa literária provocativa deve ser, sem fechar o ciclo, nos permitindo reflexões. Ao contrário, como traz o narrador Exu, no desfecho da história, vai ter “padê”, uma expressão que designa o começo, não o final de um ciclo. Inserida na dinâmica do vestibular, a publicação em questão ainda vai render muitos debates, considerações e reflexões. Agora é acompanhar. Boa leitura.
A Casa do Mistério ou A Casa do Renascimento (Brasil, 2024)
Autor: Gildeci de Oliveira Leite
Editora: Segundo Plano
Páginas: 191