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Crítica | BRZRKR: Bloodlines – Vol. 1

Unute como instrumento da ascensão e queda de impérios.

por Ritter Fan
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Encerrada a primeira e muito bem-sucedida maxissérie em 12 edições de BRZRKR publicada entre março de 2021 e março  de 2023, a BOOM! Studios começou a trabalhar na diversificação de sua ainda nascente franquia que faz uso proeminente do nome e das feições do ator Keanu Reeves em todo o material de divulgação, licenciando sua propriedade para adaptações literárias e audiovisuais. Na seara dos quadrinhos, a continuidade das histórias não foi esquecida, mas a editora multimídia partiu para uma estratégia mais econômica, por assim dizer, investindo em one-shots com mais do que o dobro do número usual de páginas das HQs americanas sobre o passado do imortal Unute – ou B – no lugar de efetivamente continuar a história da maxissérie, algo que ainda deve acontecer, mas que não parece estar nos planos imediatos da editora.

Os dois primeiros one-shots, Poetry of Madness (Poesia da Loucura) e Fallen Empire (Império Caído) foram lançados respectivamente em julho e novembro de 2023 e colecionados no Volume 1 de Bloodlines, encadernado que, ao que tudo indica, terá essa função doravante, já que, quando da publicação da presente crítica, outro one-shot já havia sido publicado, com mais um anunciado, com Bloodlines – Vol. 2, que os conterá, já planejado para o final de 2024. Apesar de serem tematicamente muito semelhantes, como as equipes criativas são completamente diferentes, resolvi escrever sobre cada um dos dois one-shots que fazem parte de Bloodlines – Vol. 1. Vamos lá?

Poetry of Madness
(Poesia da Loucura)

Um dos mais interessantes aspectos da mitologia de BRZRKR que, infelizmente, é mal aproveitado na maxissérie original, diz respeito a Unute ser uma espécie de “memória viva” de civilizações perdidas ao longo de seus 80 mil anos de vida, ou seja, alguém que, além de ser imortal, tem memória perfeita, que carrega consigo os ensinamentos e as tecnologias esquecidas pelas brumas do tempo, servindo, sob certos aspectos, de ponte entre povos díspares e distantes uns dos outros. Apesar de Poesia da Loucura não exatamente mergulhar de cabeça nesse tema potencialmente instigante, o one-shot situa o protagonista como o guardião do continente (no caso, cidade) perdido de Atlântida, mais especificamente do rei de lá que ele salvara quando criança e passara a proteger e a tutelar ao longo das décadas.

Quando a história escrita por Steve Kroce começa, história essa narrada por uma mulher que observa os atos de seu mestre, vemos o obrigatório espetáculo de sangue, tripas e morticínio que parece ser quase que a única razão de ser de BRZRKR, com Unute liquidando com um exército que cobiça as riquezas de Atlântida. Quando não sobra um inimigo em pé ou mesmo sequer inteiro, a rasa trama central começa a tomar forma, com o rei de Atlântida revelando-se como um homem corrompido por uma religião que deseja invocar ninguém menos do que o lovecraftiano Cthulhu, uma gigantesca e assustadora criatura extradimensional repleta de tentáculos para seguir com o expurgo da humanidade, com o sangue do protetor imortal da cidade servindo de artifício para os religiosos e o rei se protegerem do fulminante ataque.

O que se seque dessa premissa é, como não poderia deixar de ser, mais violência, sangue e tripas, desta vez não só humanas, como também de monstros sobrenaturais que, como o leitor poderá muito facilmente adivinhar, não tem chance contra Unute e seu modo de fúria destruidora total e absoluta, pois o título da HQ não é uma corruptela de berzerker sem querer. Ainda que seja marginalmente interessante ver uma versão de Cthulhu dar as caras na mitologia da franquia, como a solução para tudo é apenas a violência desmedida causada por um protagonista superforte e imortal com fator de cura que seria motivo de inveja em Deadpool e Wolverine juntos, a grande verdade é que a narrativa é esvaziada de ameaça, tensão ou mesmo um vislumbre de perigo. É o famoso pornô de violência pelo pornô de violência, sem nenhum cuidado mínimo para erigir uma narrativa que ofereça algo mais do que simplesmente isso.

A arte, também cortesia de Kroce, com cores vibrantes de Dave Stewart, tem um estilo caricatural, de feições humanas exageradas e poses de ação que parecem completamente deslocadas, flertando com o farsesco, algo que, diante do festival de mortes violentas quase a cada página, pelo menos funciona como um atrativo, como uma distração para as repetições da história. Com isso, Poesia da Loucura, como a maxissérie que veio antes, flerta com o que Unute representa para a História do Mundo, mas, em última análise, desperdiça essa abordagem, trocando-a pela banalidade do gore. Tem quem goste. Eu, pessoalmente, gosto também, mas só gore pelo gore é preguiçoso e cansativo, mas a editora e Keanu Reeves não parecem muito interessados em sair desse loop.

Fallen Empire
(Império Caído)

Depois da decepção que foi Poesia da Loucura, comecei a leitura de Império Caído naturalmente de má vontade, sem muita esperança de ler algo melhor do que mais do mesmo, só que em outro cenário. Afinal, se espremermos, mesmo o mais benevolente entre nós, leitores de quadrinhos, concluirá que BRZRKR é uma HQ criada para tentar chocar com violência extrema sem oferecer algo mais nesse pacote, ou, colocando em outras palavras, é uma obra que vem para saciar uma inexplicável sede de sangue por parte de muita gente que quer apenas ver esse tipo de abordagem sem maiores subtextos, sem que seja necessário pensar um pouquinho sequer. E olha que não sou purista – longe disso! – e até acho que há espaço para esse tipo de abordagem, mas confesso que, como diria o Pica-Pau, esse anos todos nessa indústria vital me cansaram desse nível de bobagens ultraviolentas.

Não sei se foi em razão de minha má vontade, de minha expectativa lá embaixo, mas Império Caído acabou sendo uma grata surpresa. Ainda não é o tipo de HQ que eu tenha me deliciado lendo, mas é, sem dúvida alguma, um progresso sensível em relação ao one-shot anterior e algo que até consegue me dar esperança de que, nas mãos certas, BRZRKR pode ser mais do que parece ser. Obviamente que os ingredientes “obrigatórios” da franquia estão plenamente presentes aqui, ou seja, pancadaria, sanguinolência e mortandade aos borbotões, pois não poderia ser diferente (na verdade poderia, mas vocês me entenderam, não?), mas Mattson Tomlin, no roteiro, oferece algo mais tanto em suas escolhas narrativas e estilísticas quanto no conteúdo de sua abordagem que dá a Unute uma bem-vinda, ainda que trágica, história de amor em meio à uma paisagem desértica em alguma região das arábias em um passado distante, mas bem menos distante do que em Poesia da Loucura.

Para começo de conversa, Tomlin enquadra a narrativa da queda de um império – de dois, na verdade – com uma desesperada mulher envelhecida e sem nariz procurando sacerdotes para eles registrarem a história de sua civilização, já que ela é, ao que tudo indica, a última sobrevivente. Só com isso, o roteirista já consegue trazer algo novo e também urgente, com a história dentro da história, então, contando como Unute, usado para jogos gladiatoriais na cidade da narradora, acaba se apaixonando pela esposa do rei e os dois, juntos, fogem pelo deserto, sendo, claro, perseguidos implacavelmente ao longo de muitos anos. Ao longo do tempo, como é de se esperar, laços de amor são criados e a narrativa vai, então, ganhando contornos mais interessantes, com um bom uso de clichês e reviravoltas do gênero que um leitor com um mínimo de experiência conseguirá deduzir muito rapidamente, ainda que isso, para mim, não seja demérito do texto.

Diferente do que Kroce fez, a arte de Rebekah Isaacs é mais… tradicional, mais realista e, considerando o contexto quase shakespeariano da história, tenho para mim que o estilo funcionou muito bem. Isaacs não se arrisca muito com páginas explosivas ou spreads duplos, mas sua distribuição de quadros é sempre eficiente e repleto de drama, mas sem invencionices, com a artista emprestando até mais beleza e seriedade do que uma obra do universo BRZRKR merecia. As cores tendentes ao “frio” de Dee Cunniffe parecem ser contraintuitivas em relação à ambientação desértica, mas o colorista também faz tudo funcionar harmonicamente com o lápis de Isaacs e texto de Tomlin, resultando, talvez, na melhor história de Unute até o momento, isso considerando inclusive a maxissérie original. Agora é torcer para que os próximos one-shots mantenham ou elevem a qualidade de Império Caído, pois essa história aqui provou que BRZRKR pode ser mais do que “tiro, porrada e bomba” e variações disso.

BRZRKR: Bloodlines – Vol. 1 (EUA, 2023)
Contendo: BRZRKR: Poetry of Madness (PoM) e BRZRKR: Fallen Empire (FE)
Criação: Keanu Reeves
Roteiro: Steve Kroce (PoM), Mattson Tomlin (FE)
Arte: Steve Kroce (PoM), Rebekah Isaacs (FE)
Cores: Dave Stewart (PoM), Dee Cunniffe (FE)
Letras: Ed Dukeshire (PoM), Becca Carey (FE)
Editoria: Jon Moisan, Eric Harburn, Matt Gagnon (PoM); Ramiro Portnoy, Eric Harburn e Matt Gagnon (FE)
Editora original: BOOM! Studios
Datas originais de publicação: 26 de julho de 2023 (PoM) e 29 de novembro de 2023 (FE); 27 de março de 2024 (encadernado)
Páginas: 58 (PoM), 56 (FE)

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