O elefante branco que precisa ser retirado da sala em relação a Entrevista Com o Demônio (2023) é o tremendo erro dos diretores Cameron e Colin Cairnes em ter utilizado inteligência artificial para a criação dos intertítulos na passagem de blocos em Night Owls with Jack Delroy, o programa televisivo representado na fita. Apesar de não coadunar com a inutilização total (vulgo “cancelamento”) da produção, como muitos espectadores e profissionais da crítica ou imprensa têm feito, condeno veementemente esse tipo de uso e reafirmo a minha bandeira de que qualquer arte deveria banir o uso da inteligência artificial que substitui profissionais humanos. Por que não contratar um desenhista gráfico para criar as cartelas? O argumento de que “é algo tão pequeno que não faz diferença estrutural para a obra” (e não faz mesmo, eu concordo!) não diminui o problema e nem retira a culpa dos cineastas ou a péssima escolha da produção nesse caso. Tampouco é aceitável a justificativa sem pé nem cabeça dos australianos, dizendo que era “mais um dos experimentos criativos que gostam de fazer em seus longas-metragens” – o que é mentira, pois nem 100 Bloody Acres, nem Scare Campaign dão suporte a esta afirmação. Entretanto, o erro não apaga o fato de que estamos diante de um produto cinematográfico muito bom.
Não é a primeira vez que os irmãos Cairnes utilizam metalinguagem para brincar com vertentes do terror. Em 2016 eles dirigiram o já citado Scare Campaign, filme que explora de maneira macabra a criação de um “espetáculo do medo”, opondo a crueldade snuff de certos fóruns da internet ao “medinho controlado” proporcionado pelas produções da televisão. Aqui em Entrevista Com o Demônio, já com maior orçamento em mãos, os cineastas seguiram com o trabalho metalinguístico, fazendo um baita uso de sua maior inspiração: o telefilme britânico Ghostwatch (1992), de Lesley Manning. No longa noventista, a fronteira entre realidade e representação/criação televisiva era difusa, permitindo um olhar desconfortavelmente plural e instigante para as filmagens de um programa sobre um suposto poltergeist numa casa comum de Londres. Já o ambiente de Entrevista é mais controlado e mais fácil de fornecer conexões artísticas, com aceitabilidade por parte do público. O roteiro foi cuidadosamente pensado para aproveitar toda a criação em internas, durante a apresentação de um episódio especial do programa dentro do filme, o capítulo de Halloween, em 1977, do fictício Night Owls with Jack Delroy.
A captura da essência televisiva dos anos 1970 é algo que os diretores conseguiram fazer com excelência aqui, e todo o aparato técnico do filme prova isso: figurinos, cabelo, maquiagem, mobília do estúdio, estilo de abordagem do apresentador para os temas; hábitos sociais e toda a contextualização histórica daquela década. Antes mesmo de iniciarmos a fita, temos acesso a um panorama que, apesar do didatismo, não é ruim. Conhecer o momento, as exigências e tendências daquele momento dos Estados Unidos (e parte do mundo) ajuda o espectador a entender o foco narrativo da obra e muitas das escolhas dos diretores. No processo, distribuem-se acenos para momentos clássicos do cinema da década, cada um amarrando-se com aspectos importantíssimos da película, como as linhas visuais de possessão demoníaca vindas de O Exorcista (1973); o estilo de narração-suspense introdutória de O Massacre da Serra Elétrica (1974) e a forma-conteúdo geral de Rede de Intrigas (1976).
Os cineastas fazem uma ótima administração do tempo, escalando devagar as consequências e o tom da possessão, com situações progressivamente mais intensas e mais difíceis de se esconder do auditório ou das expressões dos personagens. David Dastmalchian compõe um protagonista aplaudível, um homem ambicioso, capaz de sacrificar muita coisa para que seu programa tenha o “sucesso definitivo“. É em torno dele, na verdade, que a história se organiza e que muitos dos elementos demoníacos a serem manifestos estão ligados. Também é em relação ao seu programa que muitos dos melhores aspectos do filme se solidificam, especialmente a dualidade do material diegeticamente filmado: a gritante diferença entre o que foi ao ar e o que realmente foi gravado no fatídico episódio de Halloween. O filme nos fornece as duas versões do produto com um “algo a mais”: os elementos de bastidores e a confusa, estranha e talvez exagerada sequência final, mostrando o que se passou na mente do apresentador no momento em que o demônio se manifestou por completo e conduziu Delroy à tragédia final.
Não diria que todo o bloco onírico na mente do apresentador (ou uma realidade criada por poder demoníaco, que seja) é um momento desnecessário ou sem sentido no filme, porque suas bases já são apresentadas nos 10 primeiros de projeção; ou seja, é a culminação de um plantio do enredo em seu primeiro ato. Contudo, sua constituição é tão diferente do que até então se tinha apresentado, que acaba se tornando uma intrusa na unidade fílmica, consequentemente, diminuindo a qualidade da obra por apresentar algo cifrado, experimental e parcialmente à margem do projeto, inclusive em seu aspecto estético.
O comentário sobre “não mexer com forças que não conhece”, a clara crítica à espetacularização da TV e ao modelo de programas “topa tudo pela audiência” destacam-se em diferentes níveis e sagram-se como temáticas ainda vivas e relevantes em nossos dias. Exceto pelo exagero místico nos minutos finais, Entrevista Com o Demônio é um filme deliciosamente instigador, explorando um aspecto metalinguístico do terror “fora de seu tempo” e utilizando com muita competência as ferramentas “da época” para completar sua proposta. Apesar de envolvido numa polêmica que não precisava ter existido, vale muito a repercussão que teve, pois é um terror de expectativa com essência setentista que vai deixar muita gente pensando sobre o que, realmente, aconteceu durante o programa que acompanha. Ou será que tudo o que vemos na tela foi apenas uma edição extremamente sensacionalista de Night Owls with Jack Delroy?
Entrevista Com o Demônio (Late Night with the Devil) — Austrália, EUA, Emirados Árabes Unidos
Direção: Cameron Cairnes, Colin Cairnes
Roteiro: Cameron Cairnes, Colin Cairnes
Elenco: David Dastmalchian, Laura Gordon, Ian Bliss, Fayssal Bazzi, Ingrid Torelli, Rhys Auteri, Georgina Haig, Josh Quong Tart, Steve Mouzakis, Paula Arundell, Tamala Shelton, Christopher Kirby, John Leary, Gaby Seow, Elise Jansen, John O’May
Duração: 93 min.