Mas, afinal, quem é Paolo Macchiarini? Numa perspectiva antológica, os realizadores da segunda temporada de Dr. Death apresentam ao público mais um caso de um profissional da área da Medicina que por detrás de sua fachada elegante e competente, escondia dos pacientes e de todos que gravitavam ao seu redor um perigoso caminho pavimentado por mentiras, falsidade na composição de dados em artigos científicos e uma frieza hedionda ao lidar com seres humanos que se submeteram as seus procedimentos e sofreram, nesse processo, severas consequências. Aqui interpretado por Edgar Ramirez, com elementos ficcionais adicionados para permitir o desenvolvimento da narrativa seriada, ele se põem diante da sociedade como um cirurgião renomado que se tornou conhecido não só por suas habilidades médicas, mas também por sua ética questionável e conduta criminosa. Conhecido como o “Homem dos Milagres”, o médico, aqui transformado num aterrorizante personagem frio e calculista, traz para o entretenimento televisivo questões sobre a ética na medicina, bem como os limites da ciência e a responsabilidade dos profissionais de saúde diante do fator humano em suas práticas cotidianas. Criada por Patrick McManus, a primeira temporada explorou a violenta saga do desprezível Christopher Dunstch, interpretado por Joshua Jackson, um médico conhecido por promessas que não eram cumpridas para os seus pacientes, levados à morte a cada procedimento consciente do “monstro”.
Resgatada para uma nova temporada, Dr. Death fecha o seu segundo bloco de episódios na trajetória de Macchiarini, dirigidos com eficiência por Jennifer Morrison e Laura Besley, com textos assinados por McManus e Ashley Michel Hoban. Paolo Macchiarini era um cirurgião italiano conhecido por suas inovações em transplantes de órgãos e por suas pesquisas em bioengenharia de tecidos. Sua carreira brilhante o levou a trabalhar em diversos hospitais de prestígio ao redor do mundo, ganhando reconhecimento por suas cirurgias pioneiras e pela esperança que trazia a pacientes com doenças graves. Tudo parecia um mar de flores quando o paciente chegava ao centro hospitalar e aparentemente ganhava uma nova oportunidade para continuar sua vida. No entanto, a reputação de Macchiarini começou a desmoronar quando surgiram acusações de conduta antiética e fraudulenta. Ele foi acusado de falsificar resultados de pesquisas, omitir informações sobre os riscos de suas cirurgias e realizar procedimentos médicos arriscados em pacientes sem o devido cuidado e autorização ética. Essas alegações escandalosas, material valioso para uma narrativa seriada ficcional, promovem momentos de muita tensão e também arregimentam debates sobre os perigos da busca por fama e reconhecimento a qualquer custo, mostrando como um profissional respeitado pode colidir diante de sua ambição desmesurada.
Para aqueles que adoram finais felizes e redondinhos, pode ir esquecendo. Dr. Death: 2ª Temporada acaba de maneira satisfatória, com todos os personagens seguindo as respectivas vidas, diante das dores e traumas, com escolhas narrativas que caminham por uma via sombria, bastante realista, diferente do que se espera dos roteiros mais convencionais. Não é uma série para desilusões, ao contrário, o programa nos mostra como cada um dos impactados pelo médico conseguiu prosseguir. Alguns mais circunspectos. Outros mais sorridentes e esperançosos, no entanto, com percursos dramáticos que evitam adoçar algo que é demasiadamente amargo. Surreal para aqueles que ainda acreditam na mínima dose de justiça, na época, o caso de Paolo Macchiarini abalou profundamente a confiança na comunidade médica e levantou questões sobre a regulação e a supervisão das práticas científicas inovadoras em ambientes hospitalares, espaços onde os resultados catastróficos podem custar vidas. Os danos causados por suas ações irresponsáveis reverberaram não só em sua própria carreira, mas também no campo da medicina regenerativa e dos transplantes de órgãos, aumentando o ceticismo em torno de procedimentos de vanguarda e minando a confiança pública na comunidade médica.
Ao levantar mais perguntas que necessariamente fornecer respostas, a série reflete sobre até que ponto a busca por inovação e reconhecimento pode justificar práticas médicas duvidosas. Além de destacar os limites éticos da experimentação médica em seres humanos e delinear como é possível garantir a transparência e a prestação de contas na pesquisa científica de tamanho porte, perpetradas pelo legado controverso de Macchiarini. Em cada um dos episódios, construídos em sua maioria pela assertiva direção de fotografia de Joe Collins, contemplamos boquiabertos como a história absurda de Paolo Macchiarini nos faz refletir sobre a importância da integridade e da ética na prática médica. Ética, sabemos, um conceito falido há eras. Com supostos avanços científicos e inovações médicas realizadas sem levar em consideração a segurança e a dignidade dos pacientes, a trama tecida pela série põe em cena palavras-chave como ganância, irresponsabilidade. Além do médico, a produção traz outros personagens esféricos para estruturar o material pesado, de diálogos objetivos e desenvolvimento dinâmico. Benita Alexander (Mandy Moore) surge como a jornalista que se envolve romanticamente com Paolo e começa a descobrir verdades perturbadoras, tais como as suas mentiras acumuladas, o constante espiral de situações que não se conectam, dentre outras revelações aterrorizantes.
Ela se torna o ponto nevrálgico entre o desenho do personagem médico em suas interações sociais e a conexão com as suas práticas médicas. Enlutada pela perda recente do ex-marido, e com uma filha ainda no início da adolescência, a jornalista enfrenta bravamente a enrascada na qual se envolve, utilizando do seu faro jornalístico para retirar as camadas generosas de mentiras espalhadas pelo interesse amoroso ao longo de sua relação. A sua ex-chefe e amiga, a coadjuvante Kim (Judy Reyes), é uma ótima construção de personagem para estruturar a evolução de Benita no protagonismo. Dentre outras figuras ficcionais importantes, temos o Dr. Nathan Gamelli (Luke Kirby), colega do Dr. Paolo Macchiarini bastante cético e questionador diante das afirmações sobre a criação de órgãos de plástico para seus pacientes, sendo um dos catalisadores da investigação que mina temporariamente a saga do “Homem dos Milagres”. Dra. Ana Lasbrey (Ashley Madekwe) é uma das médicas que vai até o limite, observando os atos equivocados durante o processo, mas mixando ingenuidade com ambição, revela as verdades necessárias muito tardiamente, mas busca a sua redenção antes que a coisa fique ainda pior. Gustaf Hammarsten interpreta o Dr. Anders Svensson, outro médico do Instituto Karolinska, parte da equipe que também começa um processo de desconfiança e desânimo diante dos resultados desastrosos das práticas do “antagonista”. Além desses, temos Nils Headley (Jack Davenport), médico-chefe do Karolinska, obcecado pela possibilidade do Prêmio Nobel para a universidade médica, sendo irresponsável em sua conduta diante da denúncia de membros da equipe, logo depois das coisas começaram a dar muito errado. É um personagem que aparece pouco, mas em suas interações, permite o desenvolvimento de debates acerca dos mais proeminentes.
Em linhas gerais, os oito ótimos episódios da segunda temporada trazem de maneira equilibrada seguintes pontos dramáticos: o fascínio da comunidade médica pela carreira de Paolo Macchiarini, desde no campo da cirurgia de transplante de traqueia, ao processo de construção de sua reputação como um pioneiro e inovador na medicina regenerativa. Inovação científica é o que toda nação bem desenvolvida almeja para a sua representação no mundo. Os transplantes de traqueias sintéticas, procedimentos controversos realizados por Macchiarini com células-tronco e suas complicações associadas a essas cirurgias passam ilesos, mesmo quando um grupo de médicos participantes da equipe do médico denuncia as suas práticas irresponsáveis e fraudes na divulgação de artigos científicos. A série também trabalha vigorosamente a construção do médico como um sociopata, numa observação pormenorizada de sua vida pessoal, incluindo seus relacionamentos românticos e as mentiras que ele contou para manter essas relações. Casado em um determinado lugar, o tal médico monstro construí uma vida com a jornalista interpretada por Mandy Moore, utilizando de táticas e estratégias típicas de uma figura social mentalmente instável, mas astuta.
Apesar de não ter sido devidamente julgado pelo viés do Direito, as investigações realizadas por várias instituições médicas e jornalistas globais expuseram as falhas e os riscos de seus procedimentos experimentais, além de delinear os testemunhos de vítimas e famílias, dando voz ao que sofreram com os impactos das ações do profissional construído com muita competência pelo desempenho dramático de Edgar Ramirez, um homem ora sedutor, ora digno de ojeriza. As suas práticas levantam também diversas questões sobre ética na pesquisa médica, incluindo a falta de aprovação para muito dos procedimentos experimentais realizados em suas empreitadas sanguinolentas ao redor do mundo. Muito da carga culposa recai sobre o Instituto Karolinska, na Suécia, e seu conselho que apoiou o médico carniceiro por longo tempo, deixando para investigar quando já era tarde. Ademais, outro tema importante debatido na temporada é a importância do jornalismo investigativo para o levantamento de debates sobre situações do tipo em nossa sociedade. A jornalista perde a mão ao passo que se envolve com a sua fonte, mas aparentemente é essa a intenção dos roteiristas ao demonstrar o quão malicioso era o Dr. Paolo Macchiarini, sábio em suas palavras e exímio construtor de narrativas fabulosas para mascarar a sua postura cínica diante do almejado prestígio social que conquistou.
Dr. Death: 2ª Temporada (idem, Estados Unidos/2023).
Criação: Patrick McManus
Direção: Jennifer Morrison, Laura Besley
Roteiro: Ashley Michel Hoban, Patrick McManus
Elenco: Edgar Ramirez, Mandy Moore, Luke Kirby, Ashley Madekwe, Gustaf Hammarsten
Duração: 45 min (cada episódio – 08 episódios no total)