Se pensarmos bem, o problema nem é o uso do recurso narrativo que conhecemos como Deus Ex Machina (que, acreditem ou não, já havíamos cogitado como possibilidade nos comentários de A Lenda de Ruby Sunday). Eu sempre dou o exemplo do último arco escrito pelo maluco do Grant Morrison para o Homem Animal, entre 1989 e 1990: uma obra-prima baseada no exato conceito de Deus Ex Machina como opção de encerramento de uma longa saga. Assim como o clichê, essa abordagem pode entregar algo inesquecível, desde que o texto e o contexto da produção trabalhem para isso, deixando as escolhas preguiçosas de lado e fazendo uso do próprio recurso para construir o enredo. Em suma, o bom uso desses ingredientes dramáticos está em manipular a fórmula; jamais ser manipulado por ela. Conhecendo bem Russell T. Davies, não é de espantar que esse facilitador tenha aparecido aqui. Essa é uma de suas recorrências na conclusão de arcos, aliás. Todavia, não me lembro de ver o showrunner descer a um tão patético baixio de desrespeito ao público e a Doctor Who como ele fez neste Finale de 1ª Temporada, com o decepcionante Império da Morte (Empire of Death).
Encerrada a linha principal do ano, vemos que venceu — no pior de todos os sentidos — a toada mais infantil que notamos muito forte nos dois primeiros capítulos da temporada e que já tinha dado as caras estruturalmente em Risadinha. Diria, até, que o fracasso desse Finale começou lá, com o Toymaker anunciando a chegada de deuses poderosos no caminho do Doutor e a figura “daquele que espera“, promessa que factualmente se cumpriu, revelando o chefão no penúltimo degrau da jornada, o carregador da morte, o grande Sutekh. Apesar do desenvolvimento passível de críticas, eu gostei bastante de A Lenda de Ruby Sunday, porque entendo o texto erguido como um crescendo de ação reveladora, deixando-nos com mistérios na ponta da lança para a resolução… no episódio final. Ou seja, desde o aniversário de 60 anos temos uma visão progressivamente grandiosa do que poderia acontecer aqui. E não é como se o público tivesse criado uma alta expectativa. O público simplesmente espelhou o auto-hype que o show se outorgava.
Como se não bastasse, Davies lançou uma pista falsa (Susan) que mexeu com todo whovian que se preze, e não ofereceu compensação alguma para a frustração que se seguiu. Trouxe um vilão clássico de essência mística e poderes imensos que foi porcamente utilizado para “fazer-e-imediatamente-desfazer” algo sem critério e com encerramento hediondo, tanto para o vilão quanto para o mal que ele fez ao Universo (uma mistura vergonhosa do bicho que mordeu Chibnall na linha do “mudei tudo, mas não mudei nada“, em Timeless Children e, logo depois, em Flux). E por fim, apresentou três mistérios de identidade feminina cativa (Ruby / mãe de Ruby / vizinha de Ruby) que não deram em nada notável. Confesso que adorei a cena de reencontro entre mãe biológica e filha, mas foi só isso mesmo. Todo o restante desse núcleo familiar foi estéril e impessoal. Conseguiu ser mais indiferente do que a família de Yaz. Cadê o cuidado na escrita de diálogos e cenas de ligação que vimos em A Igreja da Rua Ruby?
Todas as explicações dadas em O Império da Morte são ruins: a mãe de Ruby; o dedo apontado para frente; a essência de Ruby; Sutekh, suas motivações, criação de “anjos da morte” e seu fim. E, para piorar, mesmo no final da temporada, a tal vizinha interpretada por Anita Dobson manteve-se como um mistério. Ela seria (possivelmente) a única coisa boa que poderia sair dessa salada desfigurada de tramas que começam numa colossal promessa e terminam na mais profunda decepção e desleixo. Isso é o que dá querer imitar o “efeito-Missy” de mistério para uma personagem feminina com participações misteriosas ao longo da temporada. Ao menos Moffat soube entregar o ouro no momento certo. Já Davies achou que seria inteligente sustentar essa ponta dramática (provavelmente para o Especial de Natal), depois de nos entregar coisa nenhuma no Finale. Império da Morte conseguiu ser pior que The Vanquishers, inclusive nos diálogos. Que vergonha, minha gente. Que vergonha!
Doctor Who – 1X08: Império da Morte (Empire of Death) — Reino Unido, 22 de junho de 2024
Direção: Jamie Donoughue
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: Ncuti Gatwa, Millie Gibson, Gabriel Woolf, Susan Twist, Bonnie Langford, Jemma Redgrave, Yasmin Finney, Genesis Lynea, Lenny Rush, Aidan Cook, Nicholas Briggs, Alexander Devrient, Jasmine Bayes, Anita Dobson, Michelle Greenidge, Angela Wynter, Sian Clifford, Amol Rajan, Aneurin Barnard, Tachia Newall, Fela Lufadeju, Faye McKeever
Duração: 55 min.