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Crítica | Clube dos Vândalos

Um autêntico retrato de um estilo de vida e de um país.

por Ritter Fan
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Apesar de eu achar que o diretor e roteirista Jeff Nichols mais do que merece uma grande oportunidade na Hollywood mainstream, potencialmente encarando um projeto grandioso de centenas de milhões de dólares, tenho para mim que ele é um dos melhores cineastas independentes americanos de sua geração, criando e lançando poucos, mas delicados e belíssimos filmes em uma carreira que, podemos dizer, começou relativamente tarde, apenas em 2007, quando ele já tinha 29 anos e que poderia ser desvirtuada pelo sucesso mais amplo. Com apenas cinco filmes em seu currículo, ele finalmente conseguiu financiamento de monta da Regency Pictures para colocar nas telonas um projeto xodó seu de quase 20 anos, uma adaptação do famoso (nos EUA) fotolivro The Bikeriders, do jornalista e fotógrafo Danny Lyon, que conta a história do clube de motocicletas Chicago Outlaws Motorcycle Club, do qual ele fazia parte, por meio de fotografias e entrevistas que ele reuniu ao longo de vários anos na década de 60 e que foi originalmente publicado em 1968.

Nichols faz um “dois em um”, ou seja, ele não só conta como o referido livro foi feito, fazendo de Lyon, vivido por Mike Faist, um personagem de seu filme que entrevista principalmente Kathy Bauer (Jodie Comer), primeiro namorada e depois esposa de Benny (Austin Butler), um dos primeiros membros do clube do título fundado por Johnny Davis (Tom Hardy), como também conta a história do próprio clube. Com uma montagem que divide o longa em capítulos, vemos a criação do clube como uma ideia de Johnny para dar um propósito para sua vida e estabelecer um senso de comunidade, sua evolução e crescimento nos anos seguintes e como ele começa a desvirtuar-se, partindo para a forma de gangue fora-da-lei na medida em que passa a absorver novos e mais jovens membros e a espalhar-se em filiais pelo meio-oeste americano. O que Nichols faz, com essa estrutura, é uma inteligente maneira de adaptar um fotolivro quase que como um “fotofilme”, com as sequências funcionando como fotografias representativas dos diversos momentos importantes e transformativos pelos quais o clube passa, algo que o filtro suave, levemente dessaturado, de Adam Stone, diretor de fotografia que sempre trabalha com Nichols, ajuda à dar vida.

Mas mais do que isso, Clube dos Vândalos é um recorte respeitoso, mas honesto e sem firulas, de uma cultura muito específica que foge de abordagens românticas e que pode ser encarado como um retrato da vida em sociedade em geral, ou seja, o quanto nós precisamos de nossos pares para dar sentido à nossa existência e o quanto isso, multiplicado por um número cada vez maior de pessoas, afetado pelas mais diferentes personalidades e por eventos externos, tende primeiro a dar elasticidade aos propósitos originais e, depois, corrompê-los quase que por completo, transformando o grupo em uma turba, a comunidade em uma desarmonia. Aliás, os eventos externos, notadamente o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã e as consequências psicológicas naqueles que foram para o fronte e retornaram, são particularmente relevantes não só objetivamente para a desconexão do clube e sua transformação em gangue como também para indiretamente representar a famosa perda da inocência e o encaminhamento dos EUA para um novo caminho de violência, paralelizando o clube ao país e vice-versa.

O olhar de Nichols é apurado. Cada cena tem seu propósito dentro da estrutura que ele elegeu e cada “capítulo” é uma peça importante nessa evolução – ou involução, dependendo de como o espectador encarar – dos Vândalos e de seu estilo de vida que é curiosamente bem mais regrado no início do que a percepção popular dita sobre clubes de motocicletas. Mas talvez as características do cineasta que eu mais aprecie seja sua perfeita calma e tranquilidade que abre todo o espaço possível para que o elenco central e também, lateralmente, ainda que um pouco caricaturalmente, o coadjuvante – Michael Shannon, Norman Reedus, Boyd Holbrook e Damon Herriman – desabroche completamente ao longo de sua narrativa, sem jamais, em momento algum, perder a naturalidade ou a imersão e, também, sua sintonia com os atores. Dos três principais, fica evidente como Nichols sabe que é Jodie Comer quem tem maior latitude dramática e ele usa uma discreta progressão física na personagem que faz de seus cortes de cabelo e de seus figurinos ecos de sua linguagem corporal, de sua inflexão de voz e sua capacidade de dizer muito com o olhar, com pequenos movimentos da boca. E Comer tem tempo para trabalhar sua personagem; tem uma câmera que, por mais inclemente que possa ser em seus close-ups, está ali, esperando pacientemente que Kathy conte a história dos motoqueiros a partir de seu ponto de vista tanto para Lyon e, claro, para nós.

De maneira semelhante, Nichols extrai de Tom Hardy aquela sua atuação fechada, introspectiva, marcada pelo mistério e pela densidade do que não é dito ou do que é apenas dado a entender com poucas palavras, com um toque sentimental debaixo de várias camadas de masculinidade sutil. É um trabalho mais do que esperado do ator, mas que, sinceramente, há muito tempo não via nesse nível e que pode ser comparado à sua inesquecível performance em Guerreiro. Austin Butler, um dos jovens atores mais cotados do momento, talvez tenha seu melhor papel de sua ainda incipiente carreira, com Nichols muito claramente querendo extrair dele o imagético que associamos mais diretamente a James Dean, mas ao mesmo tempo sem copiar o ídolo que infelizmente viveu pouco. Benny é um homem simples, que apenas vive sua vida e que tem nos Vândalos um porto seguro e Nichols sabe usar a beleza “antiquada” do ator plenamente a favor do personagem, dando a Butler todas as oportunidades para ele mostrar a que veio, oportunidades essas que ele agarra com todo o fervor ainda que nem sempre acerte completamente no equilíbrio entre o estoicismo verdadeiro e o semblante de olhar perdido e lacrimoso. Se ele não chega ao nível de Comer e Hardy, ele pelo menos fica ali na vizinhança, pois o filme, muito preocupado com as relações humanas – que filme de Nichols não tem essa preocupação, não é mesmo? – não funcionaria como funciona se a trinca central não vibrasse na mesma frequência.

Clube dos Vândalos, por seu tema, estilo e abordagem narrativa, tem talvez a natural tendência de passar completamente despercebido do público em geral, como, aliás, aconteceu com toda a filmografia de Nichols. Essa é uma das principais razões pela qual eu advogo que o diretor tenha oportunidade de entregar um blockbuster que chame atenção para seu trabalho anterior, como aconteceu, por exemplo, com Denis Villeneuve. Por outro lado, advogando ao contrário e de maneira até egoísta, o cineasta é uma relativa raridade no panteão de diretores jovens americanos e seus filmes todos pequenos joias imperdíveis a ponto de dar vontade de mantê-lo “escondido” para evitar sua corrupção como o clube transformado em gangue que ele retrata em mais este belo exemplar de sua carreira.

Clube dos Vândalos (The Bikeriders – EUA, 2023)
Direção: Jeff Nichols
Roteiro: Jeff Nichols (baseado em livro de Danny Lyon)
Elenco: Jodie Comer, Austin Butler, Tom Hardy, Michael Shannon, Mike Faist, Norman Reedus, Boyd Holbrook, Damon Herriman, Beau Knapp, Emory Cohen, Karl Glusman, Toby Wallace, Happy Anderson
Duração: 116 min.

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