Dentro da diegese de Praia Formosa, as relações entre passado e presente não se apresentam de uma forma lógica. Julia De Simone desenvolve um universo no qual o hoje e o antes não apenas coexistem como também reverberam entre si: o presente ressignifica o passado e o passado é elemento de direta relação com o presente. Tudo ocorre ao mesmo tempo. As memórias são ao mesmo tempo um produto atual e uma dinâmica responsável pela contínua existência do ontem. O filme, voltado para relações raciais desde o Brasil colônia, coloca em perspectiva as possíveis interações entre a herança colonial nos dias atuais. Existe, aqui, uma possível confusão temporal ao melhor estilo lynchesco – em que ano estamos?, bradaria um personagem retirado de Twin Peaks, seguido de um grito agonizante. Em Praia Formosa também somos apresentados a essa angústia frente às viagens temporais propostas pela direção. Acompanhamos Muanza, uma jovem negra trazida ao Brasil vinda do Congo e suas interações com o período colonialista e suas implicações sociais nos dias atuais do Rio de Janeiro.
A protagonista, de largada, é lançada dentro de uma decadente casa na qual vive com sua patroa, uma confusa senhora portuguesa. A casa é grande, repleta de portas e passagens secretas, mas o mais marcante é seu descuido completo: o papel de parede desbotado, as portas caindo aos pedaços, as madeiras já apodrecidas, entre outros. Essa moradia em frangalhos pode vir a dar conta de explorar a decadência moral e ética de um período obscuro da história do Brasil. Dentro da casa, destaca-se, primordialmente, a relação estabelecida de Muanza com sua chefe. As interações dramáticas entre as duas são um ponto forte da obra de Julia De Simone, sendo capaz de, ao mesmo tempo, construir uma simpática protagonista e uma antipática senhora dona de escravos. Presa nessa casa, a direção não deixa de lado uma abordagem irônica de Muanza em relação à sua patroa. A senhora, aqui, é transformada em uma personagem patética, frágil, beirando o ridículo. O tom de escárnio, nas sequências ambientadas na casa, é um importante material dramático. Em certa cena, por exemplo, a dona da casa pede à protagonista certa humanidade; mas, logo depois, ameaça Muanza, realizando uma espécie de chantagem emocional. Ora, fica apresentada uma boa sequência irônica: aquela que retira a humanidade do outro implora, então, por carinho.
Dentro deste castelo mal-assombrado, Muanza não se intimida e passa a explorar todos os mais duvidosos cantos da residência. Entre portas quebradas e passagens escondidas em armários, a protagonista vai descobrindo mais segredos ocultos. Cada novo cômodo descoberto parece lhe conectar com outras novas linhas temporais não apresentadas anteriormente. A casa central da trama é como uma espaçonave que transita livremente por entre passado e presente. As viagens no tempo são constantes. Seja para encontrar uma amiga perdida até, mais adiante, entrar em contato com uma adolescente pertencente aos tempos atuais – nesse momento, essa visita ao presente surge para representar toda a herança colonial presente nas relações sociais dos dias de hoje. A casa decante torna-se um personagem central da trama. Explorar sua estranha e labiríntica espacialidade é uma interessante representação de como se pode encontrar, nos mais escuros escombros da memória coletiva, possíveis viagens no tempo que apresentam como passado e presente, por exemplo, não são elementos opostos, mas complementares.
Toda a sequência situada dentro do palácio colonial é abandonada quando, repentinamente, Muanza envenena sua patroa e deixa definitivamente a casa. A personagem, agora, se vê vagando perdidamente pela cidade do Rio de Janeiro em busca de Kieza, uma amiga perdida em alguma das mais variadas linhas temporais abertas pela protagonista. A direção parece tentar estabelecer uma relação de opressão entre Muanza e o moderno Rio de Janeiro, mas isso não sai exatamente como planejado. Em um primeiro momento, a heroína, ao encontrar o Rio atual, entra em uma espécie de performance hipnótica, como se sua alma ardesse ao se ver lançada sozinha em um tempo desconhecido. Contudo, essa experiência para por aí: o que vemos depois é uma personagem confortável demais com sua viagem temporal. A cidade, potencialmente elemento opressivo, é deixada de lado.
Depois da saída da casa, Praia Formosa perde de maneira vertiginosa toda sua potência dramática. As danças entre passado e presente são resumidas a uma rápida e dispersa cena na qual somos apresentados à uma forma de cartório intertemporal cuja construção é pouco inspirada. Quando a engenhosidade temporal dá espaço a uma dinâmica quase documental, Julia De Simone perde o controle da mise en scène e seus personagens – as interações entre Muanza e Mão Celina de Xangô são mecânicas demais, faltando trabalho de atores para solidificar essa relação.
Quando se apoia em uma suspensão temporal e viagens por entre escombros de uma assustadora casa, Praia Formosa é um bom exercício de temporalidade e memória coletiva. Os primeiros entrelaçamentos entre passado e presente funcionam tanto narrativamente quanto visualmente – o explorar o tempo a partir da espacialidade da mansão é um criativo recurso que, infelizmente, é subaproveitado pela direção. Perdendo essa potência, o filme de Julia De Simone é um trabalho que desperta um primeiro interesse no espectador mas, ao fim de tudo, torna-se inconstante ao optar por maior didatismo documental em sua segunda metade.
Obs: Crítica originalmente publicada em 25 de junho de 2024 como parte de nossa cobertura do Festival Internacional de Curitiba (Olhar de Cinema). Republicada quando da entrada do longa em circuito.
Praia Formosa – Brasil, Portugal, 2024
Direção: Julia De Simone
Roteiro: Julia De Simone, Aline Portugal, Mariana Luiza
Elenco: Lucília Raimundo, Samira Carvalho, Mãe Celina de Xangô, Maria D’Aires
Duração: 90 min.