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Crítica | Em Águas Profundas, de Patricia Highsmith

Desconstruindo a vida idealizada.

por Ritter Fan
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Dois anos depois de O Talentoso Ripley, provavelmente seu mais famoso romance, Patricia Highsmith retorna para seus estudos de sociopatia com Em Águas Profundas , desta vez lidando com um casal com uma filha que vive um relacionamento sem amor mantido à tona para fins da sociedade ao redor somente por um acordo silencioso em que o marido tolera as aventuras românticas da esposa que, por seu turno, não se faz de rogada na escolha de amantes. É a idílica vida suburbana dos Estados Unidos dos anos 50 observável em tantas séries de TV e filmes da época sendo destroçada já pela premissa e continuamente exposta, revelada e moída pela prosa sutil, mas ferina de uma Highsmith particular e deliciosamente afrontosa.

Adaptado três vezes para o audiovisual, a primeira uma produção francesa de 1981 (Vítima por Testemunha por aqui), a segunda um telefilme alemão em duas partes de 1983 (sem título oficial em português) e, finalmente, a terceira uma coprodução américo-canadense, de 2022, que marcou o retorno de Adrian Lyne à direção (Águas Profundas), o que deixa entrevar o quanto sua temática tem apelo internacional, o romance é um primor de queima lenta em uma ambientação de “capa de revista” que, aos poucos, vai ganhando contornos mais sinistros, violentos e mortais, com Vic Van Allen, o marido, mostrando sua incapacidade de manter sua compostura e sanidade diante do ciúmes que sente de sua esposa Melinda e suas escapadas extraconjugais que, vale lembrar, ele mesmo aceitou para mantê-la em sua “prisão domiciliar”. Vic tem dinheiro, sofisticação e uma ideia torta do que é um relacionamento amoroso, o que contrasta com a visão mais livre e espontânea de mundo que Melinda tem, com os dois sendo incapazes de chegar a um meio termo conciliatório, como acontece tanto na vida de casais. 

O estopim narrativo, por assim dizer, é o momento em que, logo no começo do romance, Vic assume jocosamente a responsabilidade pelo assassinato de um amante do passado de Melinda, inicialmente com o objetivo de afastar um possível novo amante, mas, depois, passando a ter prazer em ver essa história ganhar mais corpo e proporção. Na veia do ditado que diz que toda brincadeira tem um fundo de verdade, Highsmith passa, então, a mostrar a propensão de Vic a realmente cometer o ato que diz que cometeu, com a narrativa mergulhando no lado sombrio da mente do marido em uma sempre crescente, mas nunca exagerada ou corrida, construção psicológica de ciúme corrosivo e de desconfianças não só por parte de Melinda, mas também de amigos da família, especialmente Don Wilson, um escritor que começa a achar que há algo de errado ali.

Apesar da marca registrada de Highsmith – a sociopatia inerente da humanidade, digamos – perpassar todo o romance, aqui ela usa esse artifício muito mais como uma crítica social à imagem da perfeição da vida de ricos (não milionários) em belas casas com jardins perfeitos em pacatas cidades americanas. Há, portanto, mais de Sem Saída do que de Pacto Sinistro em Em Águas Profundas, ainda que seja também possível traçar paralelos com Carol (O Preço do Sal) em razão do relacionamento entre um casal (lá homossexual e com amor, aqui heterossexual e sem amor) e do uso do mecanismo do marido ciumento capaz de tomar medidas extremas, ainda que bem diferentes. É, talvez, como uma fusão do melhor que a autor produzia, resultando em um thriller repleto de comentários fortes sobre o amor, o casamento e a vida à dois tendente à repetições, tédio e o distanciamento natural, com a pressão da sociedade forçando a manutenção do status quo apenas porque sim.

Gosto particularmente da forma como Highsmith, apesar de mais abertamente fazer de Vic o grande vilão em razão de seus atos e escolhas, não absolver Melinda por completo. Há uma gangorra de caracterização de vítima e algoz ao longo da narrativa, com Vic se remoendo pelo ciúme incontrolável e Melinda, sabendo disso, fazendo o que pode para torcer o metafórico punhal no abdômen do marido, inclusive ao, de certa forma, distanciar-se de sua filha Trixie ou, pelo menos, manter-se indiferente quanto à sua presença, considerado um “grande pecado” somente para a mulher até nos dias de hoje.

Em Águas Profundas só se perde levemente quando Highsmith parece acelerar as ações de Vic para chegar a um clímax movimentado. Quando a autora começa a se aproximar do final, sua calma em trabalhar o lado psicológico de seus personagens desaparece um pouco, com ela passando a privilegiar uma espécie de queda mais aguda de Vic que merecia ganhar mais páginas para uma abordagem mais completa e mais condizente com o restante da trama, ainda que o violento final faça perfeito sentido na construção narrativa do romance. Mesmo assim, o quinto livro de Patricia Highsmith continua sua tendência a criar fascinantes e monstruosos personagens que podem ser nossos vizinhos, amigos ou, claro, nós mesmos.

Em Águas Profundas (Deep Water – EUA, 1957)
Autoria: Patricia Highsmith
Editora original: Harper & Brothers
Data original de publicação: 1957
Editora no Brasil: Editora Intrínseca
Data de publicação no Brasil: 03 de dezembro de 2020
Tradução: Roberto Muggiati
Páginas: 304

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