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Crítica | Hacks – 3ª Temporada

Correndo atrás de um sonho... ou de uma obsessão.

por Ritter Fan
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  • spoilers. Leiam, aqui, as críticas da demais temporadas.

Quando encerrei minha crítica da segunda temporada de Hacks, afirmei que as histórias complementares de Deborah Vance e Ava Daniels haviam acabado tão bem que a série não deveria continuar, mesmo considerando que ver Jean Smart em qualquer coisa é um deleite constante. Minha razão para essa conclusão é que eu achava que não havia mais o que naturalmente construir ou dizer sobre as personagens a partir daquele ponto final acridoce, mas perfeito e que eu receava que o que porventura viesse seria a partir de elementos artificiais usados para criar uma continuação “forçada” da história. Dois anos depois e tendo conferido a terceira temporada da série – com uma quarta já em produção – tenho que dizer que eu estava tão certo quanto errado.

Acho que estava certo por ainda entender que o final da temporada anterior fechou a história que era para ser efetivamente contada. Também acho que estava certo, pois o tema central da nova temporada – a tentativa de Deborah de conseguir o cobiçado cargo de anfitriã de um talk show noturno, o mesmo que ela tentara há décadas e que a ela foi negado – é, queiramos ou não, um fio narrativo puxado de menções do passado da comediante para, então, ser transformado em sua obsessão. Por outro lado, eu estava errado ao achar que não havia mais nada a falar sobre as protagonistas e mais ainda sobre a capacidade que os showrunners e equipe de roteiristas demonstraram em desenvolver uma outra excelente temporada, ainda que não tão orgânica e não tão próxima da perfeição como as duas anteriores, com Jean Smart mais uma vez absolutamente arrasando em seu papel e Hannah Einbinder entregando sua melhor performance na série até agora.

O que funciona de verdade na temporada é que a ambição focada que move Deborah Vance na direção da cadeira de anfitriã de talk show (confesso que eu nunca entendi a tara dos americanos por esse tipo de programa, mas tudo bem) é costurada de maneira muito habilidosa com seu desenvolvimento para além da comediante que se reinventou na terceira idade e ressuscitou sua fama global com uma apresentação viral que a desnudou completamente. Havia outros degraus nessa escada de redescoberta e reinvenção que ela começou a galgar desde que seu confortável show em Las Vegas foi cancelado e, aqui, nós a vemos compreender mais do mundo moderno ao seu redor, algo que acontece graças à sua conexão com a jovem Ava que, muito mais do que sua principal escritora, funciona como sua mentora, em uma inteligente subversão da relação mentora-mentorada, ainda que, lógico, o papel seja recíproco.

Não é que Hacks, de repente, tenha se tornado uma série politicamente correta, mas a grande verdade é que a visão antiquada de Deborah, inegavelmente responsável por grande parte do humor que vemos na telinha, sempre foi balanceada pela presença de Ava, que funciona como seu contraponto constante e, também, como uma inteligente e pouco intrusiva maneira que os roteiristas encontraram para transmitir e explicar um pouco a visão mais liberal de mundo, algo que continua cada vez mais necessário exatamente por tanta gente ainda se fechar em copas e se sentir atingido pessoalmente ao se deparar com exemplos de diversidade e inclusividade. A estrutura de “mulher madura, branca e milionária” falando barbaridades (hilárias, mas mesmo assim barbaridades) sendo temperada por uma “mulher jovem, branca, bissexual e sem dinheiro” é ganhadora e ela continua ganhador no terceiro ano e, sob alguns aspectos, ainda mais ganhadora exatamente porque, nessa terceira tentativa, a química e o rapport hesitante entre as duas tenham chegado ao seu ápice.

Outro elemento que funciona bem na temporada é que houve mais espaço para trabalhar outra relação, uma que consegue ser ainda mais beligerante que a de Deborah com Ava, que é a do doce Jimmy LuSaque Jr. (Paul W. Downs, um dos showrunners, vale lembrar), fiel agente de Deborah e de Ava, com a barulhenta Kayla Schaefer (Megan Stalter), assistente de Jimmy e filha do dono da agência onde ele trabalhara. Com esse espaço, a série ganha uma boa e relevante subtrama, por assim dizer, que conversa diretamente com a narrativa principal, fazendo de Jimmy e Kayla efetivos instrumentos laterais que fazem a história como um todo andar, sem que os dois pareçam penduricalhos. Diria, porém, que esse espaço veio em detrimento do destaque que era dado a Marcus (Carl Clemons-Hopkins), conselheiro e gerente de Deborah que, neste terceiro ano, é empurrado quase que totalmente para longe dos holofotes, com um final de arco para ele que parece abrupto, como se o personagem tivesse sido esquecido.

Já que falei de Marcus, creio que devo também comentar um pouco sobre a subtrama da família de Deborah, ou seja, a gravidez de sua filha DJ (Kaitlin Olson) e a tentativa de reaproximação à Kathy (J. Smith-Cameron), sua irmã. Tenho consciência de esse lado precisa ser abordado dados os problemas sérios de relacionamento que existem ali e o passado particularmente complexo entre Deborah e Kathy, mas foi aqui que eu mais senti a sensação de estar assistindo a penduricalhos narrativos que parecem ter sido inseridos por obrigação, ganhando blocos muito áridos e compartimentalizados para serem trabalhados, retirando-lhes naturalidade e relevância. Toda a fluidez que foi o uso do desejo de Deborah de ser apresentadora de talk show inexiste nesse aspecto da história e, talvez, pudesse ter sido deixado mais para a frente na saga de autodescoberta da protagonista.

Mesmo na história principal, notei problemas que, em grande parte, inexistiam nas temporadas anteriores. Houve muito uso de conveniência narrativa para retrabalhar a personalidade de Deborah de maneira mais contundente e, diria, didática demais. Dois exemplos conectados explicam minha afirmação. Primeiro, vemos Deborah, feliz da vida, aceitar um convite para uma sessão de colonoscopia conjunta (tão surreal que deve ser baseado em fatos) com três lendas da comédia que ela idolatrava, em uma situação que foi algo como “prezado espectador, o que está acontecendo aqui serve para mostrar que Deborah, por mais antiquada que ela possa parecer, aprendeu muito com Ava e tornou-se uma pessoa melhor”. Depois, no episódio em que ela precisa explicar-se em uma universidade depois que um vídeo com seus “piores momentos” começa a transitar pela internet para evitar seu cancelamento, tudo é resolvido em um passe de mágica com um pedido de desculpas que leva exatamente à mesma afirmação que coloquei entre aspas acima, afirmação essa que é literalmente lida por Ava para Deborah.

Por outro lado, a repetição da estrutura do final da temporada anterior, com uma “traição por amor” de Deborah em relação à Ava poderia ser só uma repetição e eu já estava preparado para profundamente desgostar o que poderia ser um claro retrocesso. Mas ainda bem que não e, em uma reviravolta, é a vez de Ava amadurecer e jogar o jogo da indústria ao chantagear sua mentora e amiga para forçá-la a entregar-lhe o cargo de escritora principal do talk show, como antes prometido. Se a segunda temporada acabou com as duas afastadas, mas querendo ficar juntas, agora vemos as duas juntas, mas querendo ficar afastadas, o que certamente dá pano para manga para o vindouro quarto ano.

Entre ótimas pontas e participações especiais – especialmente as de Stephen Tobolowsky, Helen Hunt, Christina Hendricks e Christopher Lloyd -, roteiros que transformaram o que poderia ser apenas uma desculpa barata para continuar a série em algo efetivamente valioso e as atuações de Jean Smart e de Hannah Einbinder servindo como toda a justificativa necessária para embarcar na série, Hacks acerta novamente, ainda que não tão na mosca quanto anteriormente. Agora é esperar para ver se a relação entre Deborah e Ava chegará ao ponto de ebulição, como o final parece prometer.

Hacks – 3ª Temporada (Idem – EUA, 02 a 30 de maio de 2024)
Criação e showrunners: Lucia Aniello, Paul W. Downs, Jen Statsky
Direção: Lucia Aniello, Jeff Rosenberg, Jessica Brunetto, Paul W. Downs
Roteiro: Lucia Aniello, Paul W. Downs, Jen Statsky, Andrew Law, Joe Mande, Guy Branum, Carol Leifer, Carolyn Lipka, Ariel Karlin, Pat Regan, Samantha Riley
Elenco: Jean Smart, Hannah Einbinder, Carl Clemons-Hopkins, Paul W. Downs, Megan Stalter, Rose Abdoo, Mark Indelicato, Kaitlin Olson, Christopher McDonald, Poppy Liu, Johnny Sibilly, Angela Elayne Gibbs, Jane Adams, Lorenza Izzo, Luenell, W. Earl Brown, J. Smith-Cameron, Helen Hunt, Michael Garza, Dylan Gelula, Jordan Gavaris, Matt Bush, George Wallace, Aristotle Athari, Rachael Taylor, Dan Bucatinsky, Luke Macfarlane, Guy Branum, JD Walsh, Ely Henry, Carrot Top, Dolly Wells, Luke Cook, Mario Cantone, Naomi Ekperigin, Natasha Leggero, Andy Kindler, Steph Tolev, Patton Oswalt, Stephen Tobolowsky, Joel Brooks, Gregg Daniel, Blair Beeken, Hank Chen, Mario Lopez, Christina Hendricks, Tony Goldwyn, Christopher Lloyd, Deidre Hall, Tim Bagley, Hal Linden, Kathryn Newton
Duração: 308 min. (nove episódios)

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