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Crítica | Eles Não Usam Black-tie

Um sensível e potente drama familiar em torno da classe operária.

por César Barzine
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Antes de ser um filme sobre sindicalismo, Eles Não Usam Black-tie é uma obra sobre família. Uma obra íntima, subjetiva, que toma a questão social não como ponto central e nem como mero pano de fundo, mas como um elemento profundamente atrelado à subjetividade. As pautas aqui colocadas em mesa tornam-se tão íntimas que qualquer divisão entre o pessoal e o social é quebrada, tornando esses elementos indissociáveis; ao mesmo tempo que, no entanto, é o primeiro que abarca o segundo — daí a justificação da sentença inicial nesta crítica. 

Essa sinergia se deve ao fato de que a causa sindical vai além de apenas um conjunto de reivindicações, ela é também um ideal no sentido mais profundo do termo. Um ideal de princípios, experiências e honra. Algo, ao mesmo tempo que político, também moral e existencial. É por isso que vemos o patriarca e líder sindical Otávio exigindo de seu filho força e atitude diante de sua causa. Por outro lado, é também por um ideal que Tião, o filho, resiste. O personagem, com honra e atitude, age em conformidade aos valores que seu pai prega — porém, realizando isso ao seu modo. Nesse caso, os ideais são, acima de tudo, causas individuais; lutas que se dão no núcleo familiar e, por decorrência disso, formam um drama tão humano e individualista em meio a pautas sociais e coletivas.

O conflito central do filme é entre Otávio e Tião, pai e filho. O pai é o rebelde, inconformado e assíduo pela ação. Já o filho é o conservador, mais pé no chão e menos inquieto. Cada um inverte o seu papel na relação arquetípica entre pai e filho devido à sua respectiva causa: os direitos trabalhistas para o velho pai, e a construção de uma família para um novo (a mulher de Tião está grávida). No primeiro ato, nenhum atrito existe. Depois disso, cada um passa veementemente a defender a sua posição, ambos carregados de dualidades em suas justificativas e restrições. Essa ausência de maniqueísmo é um dos elementos que torna o roteiro e a construção de personagens do longa algo tão rico. Podemos até tomar partido, mas entendemos ambos os lados; assim, sentimos empatia e compartilhamos as aflições dos personagens. Tião é o senso de ordem, e Otávio é o de justiça; desta forma, o primeiro sempre pergunta ao pai se ele está maluco devido a sua insensatez, enquanto este questiona e se revolta com o comodismo do filho.

A atuação de Gianfrancesco Guarnieri, que vive Otávio, chama atenção nos momentos em que ele está mais acalorado. Por outro lado, a interpretação de Carlos Alberto Riccelli, que encarna seu filho, é atraente quase sempre, dado que ele, quando não expressa suas agitações, manifesta seus afetos, sendo cordial tanto positivamente quanto negativamente. E é esse lado doce que embasa os momentos de tensão, uma vez que sabemos que esses confrontos se dão em defesa de sua noiva e de seu novo filho. Dessa forma, é mais fácil estar do seu lado, pois presenciamos, desde o começo do filme, pelo que ele luta ao vermos o apreço pela sua namorada e pelo futuro bebê. Em contrapartida, nada vemos das condições acerca da vida operária. Existe a fábrica e os membros do sindicato, no entanto, o máximo que observamos sobre suas necessidades é alguns personagens reclamando do salário e dos patrões — ou seja, nada é mostrado, apenas dito. 

Outra interpretação de destaque é, como não poderia deixar de ser, a de Fernanda Montenegro. Ela vive Romana, a esposa sempre ranzinza de Otávio. Esse seu temperamento está ligado a uma segunda característica: ela representa a prudência, ainda mais que Tião. Se este está em conflito, aquela tenta apaziguar os conflitos e ser o elo da harmonia familiar. É a voz da razão que, de forma simples e seca, demonstra um ideal de mãe, esposa e dona de casa que manifesta uma certa força, um poder de reconciliação e de pôr ordem nas coisas — desde questões cotidianas aos grandes problemas enfrentados. Ela critica a conduta sindical de Otávio, mas também o embate de Tião; e, para reforçar o seu papel de agente apaziguador, chega a retirar o marido do DOPS ao fazer lá uma “revolução”. 

Infelizmente, já não dá pra elogiar tanto o trabalho de Bete Mendes, que representa Maria, a noiva de Tião. Em seus momentos menos intensos, a moça acaba tendo um desempenho que soa amador e até mesmo tosco, tendo uma dicção que não é nada natural, principalmente nas primeiras cenas. Contudo, isso é consertado em suas aparições mais ardorosas, quando enfrenta situações adversas e deixa a passividade de lado. O amadurecimento de sua figura serve para consolidar a dramaticidade do filme e da situação vivida por Tião. Ela passa a renegar a conduta do noivo, que a exercia em função dela própria, e começa a jogar na ala de Otávio. 

O clímax — em direção, roteiro e atuações — desse conflito se dá na cena em que Maria se recupera fisicamente no quarto dos sogros e passa a confrontar Tião. Ele permanece em campo, porém de forma sugestiva e por trás, sem mostrar o rosto; já ela tem um forte monólogo capturado por um zoom-in que termina em close. Os posicionamentos dos corpos e da câmera enfatizam as tensões daquela discussão focando, por esta primorosa mise-en-scène, o julgamento a Tião, que é deteriorado por sua, agora, ex-noiva.

O momento é do mesmo gênero em que Otávio também exterioriza seu rancor com o filho no quintal de casa. O terceiro ato se caracteriza, então, por um teor eletrizante e potentes intrigas dramáticas. Tião, herói do longa, cai no fundo do poço. Acompanhamos o dilaceramento de quase todos contra ele e nos comovemos com esse sujeito que é uma espécie de vítima sem ter, exatamente, malfeitores, e sim apenas outras pessoas transformadas como ele. 

O principal conflito de Eles Não Usam Black-tie está na rivalidade entre os próprios operários, não nos confrontos com seus patrões. O roteiro é um excelente exemplar de como fazer um drama político e realmente desenvolver seus temas, personagens e situações, estando aberto a diversas possibilidades, sem manter-se monolítico a um discurso inicial. Assim, dentro ainda do microcosmo operário, presenciamos, como grande inimigo do sindicato, a figura de um delator; o que indica, além da heterogeneidade desta classe, uma oposição no interior dela. Até mesmo entre os ativistas disputas se fazem centrais, tendo a discordância no modus operandi um de seus principais motores. Nem Otávio é o maior dos entusiastas sindicais e nem Tião é o seu maior opositor.

Eles Não Usam Black-tie começa com acordes serenos e lentos de violão. O som remete a uma certa paz. Em seu final, ele retorna, mas a melodia mansa agora remete a um vazio. Ao mesmo tempo, existe um clima de contemplação, de talvez juntar os cacos de um vaso quebrado. A cena em que Romana, a sempre guardiã da família, passa a separar os feijões junto com Otávio expressa isso com enorme delicadeza, em um dos instantes mais sensíveis de todo o cinema brasileiro. Após tantas brigas, gritos e palavras exaltadas, o silêncio e a calma, gestos renovados de uma tristeza permanente, sugerem simbolicamente um caminho de reconstrução.

Eles Não Usam Black-tie — Brasil, 1981
Direção: Leon Hirszman
Roteiro: Leon Hirszman, Gianfrancesco Guarnieri (peça)
Elenco: Fernanda Montenegro, Gianfrancesco Guarnieri, Carlos Alberto Riccelli, Bete Mendes, Flávio Guarnieri, Francisco Milani, Lélia Abramo como Malvina, Rafael de Carvalho, Milton Gonçalves, Anselmo Vasconcelo, Lizette Negreiros, Renato Consorte, Paulo José, Fernando Ramos da Silva, Cristina Rodrigues, Antônio Petrin, Nelson Xavier
Duração: 123 minutos.

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