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Crítica | Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

O marco inaugural do realismo brasileiro.

por Leonardo Campos
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Um dos primeiros romances clássicos de minha jornada enquanto leitor assíduo da literatura brasileira, Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma das publicações mais importantes de Machado de Assis, um escritor que, convenhamos, caro leitor, dispensa grandes apresentações. Lido na mesma época que Lucíola, de José de Alencar, e O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, o volumoso, mas divertido e fluente texto fragmentado do mestre da ironia saiu das obrigatoriedades dos vestibulares e se tornou diletantismo. Após esse, veio Dom Casmurro, em meu ponto de vista, a obra-prima do autor, seguido da leitura de alguns de seus contos. Ter as memórias do astuto Brás Cubas como chave de entrada para o universo machadiano foi uma missão complexa para um adolescente, no entanto, me permitiu entender a peculiaridade de sua escrita e avançar com mais propriedade na leitura dos outros clássicos mencionados. Em linhas gerais, a ideia é a seguinte: se você consegue atravessar “Memórias Póstumas”, então pode se considerar preparado para ler qualquer outra coisa assinada pelo escritor.

Ao longo de suas 176 páginas, com notas de rodapé e diagramação atrativa, Machado de Assis traz para os seus leitores aquilo que a crítica literária considerou o marco inicial do movimento realista na literatura brasileira. Ao versar sobre os costumes e tecer críticas contundentes aos arroubos românticos de alguns escritores de sua época, ele traz uma escrita metalinguística que “quebra a quarta parede”, técnica deliciosamente funcional na jornada de Brás Cubas, num desenvolvimento onde o personagem reconhece diretamente a presença do público ou faz referência ao fato de estar em uma obra ficcional. Nesse esquema de ruptura do espaço narrativo tradicionalmente estabelecido entre a ficção e seu público, Machado de Assis estabelece uma significativa experiência de leitura, nos convidando para uma reflexão mais profunda sobre a natureza da própria ficção. A técnica, por sua vez, não era novidade na época, mas o que faz a diferença aqui é como o escritor organiza as suas ideias e envolve o leitor, constantemente numa espécie de conversa com o personagem descrito nas páginas do livro.

Um exemplo contundente desse recurso é a tragédia Hamlet, de William Shakespeare, diversas vezes mencionada por Machado de Assis em suas publicações. Na peça, o personagem-título se dirige diretamente aos espectadores, convidando-os a refletir sobre questões existenciais e morais que permeiam a obra, tal como Brás Cubas faz, só que com toques diferentes, pois é possível perceber que para além de sua função estética, a quebra da quarta parede no romance se estabelece como uma ferramenta machadiana poderosa para desestabilizar as convenções narrativas e questionar a natureza da realidade ficcional. Ao romper a barreira entre o mundo da ficção e o mundo real, o realista cria um senso de estranheza e ambiguidade que provoca o leitor a analisar criticamente sua própria relação com a obra e com o ato da leitura em si. Assim, ao subverter as expectativas narrativas e estimular a reflexão crítica, o uso desta técnica cria um espaço fértil para a experimentação estilística, inovação literária e a expansão das fronteiras da imaginação, enriquecendo não apenas o importantíssimo legado e impacto cultural do escritor, mas também a nossa experiência de leitura, mas também abre novos caminhos para a exploração da complexidade e da profundidade da arte literária.

Publicado em 1881, o livro narra de forma não linear a vida e as reflexões de Brás Cubas, um aristocrata defunto que decide escrever suas memórias após a morte. Uma das questões centrais abordadas por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas é a fragilidade da existência humana diante da morte. Ao narrar as peripécias em vida de Brás Cubas de uma perspectiva póstuma, o audacioso autor desafia a ideia tradicional de narrativa linear e introduz o leitor a um protagonista que reflete sobre sua vida passada com ironia e cinismo. Brás Cubas, ao revisitar suas memórias, expõe as fraquezas e contradições da natureza humana, confrontando o leitor com sua própria mortalidade e insignificância diante do tempo. Há, ao longo de cada pequeno capítulo, uma estrutura narrativa inovadora de que reflete a complexidade e o caráter fragmentado da experiência humana. O uso do monólogo interior permite que Brás Cubas se dirija diretamente ao leitor, criando uma interação íntima e provocativa.

Sendo assim, contemplamos um romance onde o enredo fragmentado e não linear da obra espelha a natureza multifacetada e muitas vezes contraditória das experiências e emoções humanas, desafiando a ideia de uma narrativa coesa e linear. Como já habitual em suas composições, há as diversas críticas sociais de Machado de Assis ao utilizar doses generosas de humor e a ironia para expor as falhas e hipocrisias da sociedade brasileira da época, bem como questões universais, dentre elas, a vaidade, a ambição e a busca pelo poder. Brás Cubas, como anti-herói da narrativa, encarna essas características de forma exagerada, convidando o leitor a refletir sobre sua própria conduta e valores. Presente em listas de leituras e constantemente abordado em aulas de literatura quando o assunto é a produção cultural brasileira do século XIX, o romance de Machado de Assis ressoa até os dias atuais por sua capacidade de provocar reflexões profundas sobre a condição humana, uma palavra-chave em nossa era de discussões sobre empatia, inteligência emocional e relacionamentos interpessoais.

Por meio do enredo, nós leitores somos confrontados com questões existenciais sobre a vida, a morte, o tempo e o significado da existência. A obra nos lembra da efemeridade da vida e da importância de refletir sobre nossas ações e escolhas enquanto estamos vivos, pois, como Brás Cubas nos ensina, a morte é inevitável e a única certeza que temos. Ademais, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o autor desafia convenções, questiona valores e nos convida a refletir sobre nossa própria humanidade. Através do enredo complexo e provocativo, Machado de Assis cria um espelho no qual nos confrontamos com nossas fragilidades, contradições e ilusões, revelando assim as verdades mais profundas sobre o que significa ser humano. Machado de Assis é um dos escritores mais renomados da literatura brasileira e mundial. Sua obra transcendeu fronteiras temporais e culturais, deixando um legado literário que até hoje encanta e provoca reflexões. O cineasta Woody Allen, por exemplo, é um de seus grandes admiradores.

Nesse romance, o escritor apresenta personagens marcantes, cada um carregando consigo suas peculiaridades e complexidades. O narrador e protagonista do romance é um personagem extraordinariamente peculiar. Sua narração em primeira pessoa revela uma perspectiva irônica e crítica em relação à vida e à sociedade. Brás Cubas é egocêntrico, sarcástico e muitas vezes desdenhoso, mas sua complexidade vai além dessas características aparentes. Sua condição de narrador póstumo confere a ele uma visão única e desinibida sobre sua própria vida e a sociedade em que viveu. Através de seus relatos, Brás Cubas expõe as contradições e hipocrisias da elite brasileira do século XIX. Sua relação tumultuada com Virgília é um dos pontos mais delineados ao longo da história, pois o contato com a sua amada reflete as convenções sociais e as restrições morais da época.

Virgília, a personagem feminina central em Memórias Póstumas de Brás Cubas, é retratada como uma figura ambígua, descrita como bela, sedutora e manipuladora, exercendo sobre Brás Cubas uma influência poderosa e destrutiva. A relação entre Brás Cubas e Virgília simboliza não apenas o amor proibido, mas também as tensões e contradições da sociedade patriarcal da época. Podemos até interpretar que ela é um reflexo das restrições impostas às mulheres naquela sociedade. Sua submissão às convenções sociais e sua eventual queda em desgraça ilustram as limitações de seu papel como mulher na sociedade da época. No entanto, Virgília também representa a força e a determinação feminina, desafiando as expectativas e normas impostas a ela. No entanto, além de Brás Cubas e Virgília, o romance apresenta uma série de personagens multifacetados. Marcela, a cortesã que se envolve com Brás Cubas, é apresentada como uma figura enigmática, desafiando as convenções morais da sociedade. O filósofo Quincas Borba, representa a racionalidade e a loucura, refletindo as contradições e ambiguidades da natureza humana, personagem que depois ganha a sua própria história noutro romance do escritor.

Retomar “Memórias Póstumas” após tantos anos de leitura é refletir sobre o impacto cultural e o legado de Machado de Assis, um dos nossos maiores escritores, figura multifacetada e com a habilidade única de explorar a complexidade da mente humana e as relações sociais através de personagens meticulosamente construídos é um dos pilares de sua genialidade. Além disso, a linguagem refinada e irônica de Machado de Assis é um elemento distintivo de sua obra. A capacidade de Machado de Assis de encapsular profundas reflexões sobre a condição humana em frases aparentemente simples é um testemunho de sua genialidade literária, por isso, não é por acaso, se tornou um fenômeno de vendas após a indicação de uma estadunidense no famigerado, mas viciante TIK TOK. Como fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis contribuiu significativamente para o desenvolvimento da literatura brasileira moderna, abrindo portas para novas abordagens e estilos literários. Sua capacidade de mesclar tradição e inovação, realismo e fantasia, torna sua obra atemporal e relevante até os dias de hoje.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, podemos perceber o comprometimento de Machado de Assis com a crítica social e política como aspecto fundamental de seu legado. Sua perspicácia e análise aguda dos problemas sociais ainda ressoam com força nos dias atuais, convidando o leitor a refletir sobre as injustiças e contradições presentes em nossa sociedade. É um legado que transcende as barreiras do tempo e do espaço, continuando a influenciar a literatura e o pensamento contemporâneo. Sua genialidade literária, sua perspicácia crítica e sua originalidade estilística o tornam um dos escritores mais importantes da história da literatura brasileira e mundial. Ao refletirmos sobre o legado de Machado de Assis, somos convidados a mergulhar em um universo de complexidade, ironia e profundidade, onde as verdades humanas mais profundas são reveladas e questionadas. Em um mundo em constante transformação, a permanência do legado de Machado de Assis é um lembrete do poder duradouro da literatura como arte autêntica e transformadora, capaz de ampliar nosso repertório cultural e aguçar nosso senso crítico.

Memórias Póstumas de Brás Cubas (Brasil, 1881)
Autor: Machado de Assis
Editora: Ática – Série Princípios.
Páginas: 176.

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