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Crítica | Conto de Fadas (2022)

Mussolini, Hitler, Stálin e Churchill estão no purgatório...

por Luiz Santiago
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A história ecoa no tempo, abre feridas, forja cicatrizes, molda e remenda sociedades ao prazer das transformações humanas. Sendo historiador antes de ser cineasta, Aleksandr Sokúrov sempre explorou esse aspecto de fixação de resultados após a ação de grupos sociais, indivíduos ou lideranças icônicas em sua filmografia. Aqui em Conto de Fadas (2022), o diretor direciona o seu olhar para figuras de destaque no século XX, fazendo-as perambular pelo Purgatório, conversar, brigar e levantar esperanças sobre o futuro, mostrando para o público que as ideias, independente do ambiente, do tempo e das condições, permanecem nos autos e nas mentes. Elas se metamorfoseiam, adotam novas cores e até podem ser contestadas, mas sempre estarão lá, prontas para um resgate socialmente impulsionado. Prontas para “resolver uma crise extrema” ou guiar uma massa insatisfeita para uma recuperação supostamente simples de sua economia, por exemplo, ou de seus valores civilizacionais (bem, ao menos é isso que pensam ou que vendem para elas).

Explorar espaços oníricos sempre foi algo muito caro a Sokúrov, e aqui ele se apropria da ideia dantesca do Purgatório, em A Divina Comédia, para intensificar a estranheza causada pela escolha formal em seu filme. Utilizando em uma gigantesca biblioteca de arquivos em vídeo originais de Mussolini, Hitler, Stálin e Churchill, o cineasta e sua equipe fizeram uso de tecnologia deepfake (que permite substituir rostos em vídeos, ajustando os movimentos labiais, expressões faciais e uma miríade de outros detalhes) para colocar esses homens andando por paragens inquietantes do pós-morte. A esterilidade do lugar é contrastada com a vida em câmera lenta que ali se arrasta, prenhe de ideias total ou parcialmente ultrapassadas, com a diferença de que agora estão afetadas pela convivência entre esses políticos, pela mesquinhez e desejo (quase oculto) de redenção, além da vontade de seguir perpetuando na História aquilo que acreditam.

Enquanto personagens como Jesus Cristo e Napoleão fazem breves participações simbólicas, os líderes políticos do século XX dominam a narrativa expondo seus preconceitos, seus discursos-espelho do mundo dos vivos e, principalmente, suas birras pessoais, éticas e ideológicas uns com os outros. Aqui, a mesquinhez domina, assim como o ego ferido, a decadência moral e física e a impossibilidade de fazer algo diferente, além de repetir erros e dizeres condenáveis ou cantarem vitórias de extermínio de massas em nome de um falso progresso, pureza racial ou fé. O curioso é que, mesmo nesse cenário, as ideias ainda conquistam pessoas e têm o seu momento de esplendor e fanatismo. O diretor se permite dar alfinetadas em ideologias e partidários; inserir humor em algumas interações (os telefonemas para a rainha Elizabeth II são hilários) e cenas de múltiplos significados, como a destruição de um moinho e a citação de Cervantes durante o ato.

O primeiro ato do longa traz uma organização narrativa que se justifica plenamente diante da proposta, ao passo que os atos finais estão marcados por um aspecto mais cifrado e relativamente lírico (apontando para um ciclo perpétuo dessas mesmas ações) que desvia um pouco a atenção do espectador e solta mais a linha de reflexão inicialmente estendida. A “mania ideológica” em discussão nesses atos é facilmente percebida, mas pela construção da direção, perdem-se um pouco do foco, o que afeta a qualidade geral da obra. O Conto de Fadas que Sokúrov cria aqui é, na verdade, uma fantasia de caráter filosófico e historiográfico, com afirmações e presenças polêmicas e a determinação de um status social preocupante, de adesão das massas a figuras com mãos de ferro para “colocar ordem nas coisas todas“. Um filme relevante e importante em tudo, com contrastes e provocações que farão muita gente pensar, discordar e assentir a cada pedaço trilhado do Purgatório das ideias que nunca morrem.

Conto de Fadas (Fairytale / Skazka) — Rússia, Bélgica, 2022
Direção: Aleksandr Sokúrov
Roteiro: Aleksandr Sokurov
Elenco: Igor Gromov, Vakhtang Kuchava, Lothar Deeg, Tim Ettelt, Fabio Mastrangelo, Alexander Sagabashi, Michael Gibson, Pascal Slivansky
Duração: 78 min.

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