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Crítica | Fiasco (2024)

A Lei de Murphy aplicada inclementemente à uma produção cinematográfica.

por Ritter Fan
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Todo mundo que gosta de filmes conhece histórias cabeludas, por vezes realmente inacreditáveis, dos bastidores das mais diversas produções. Há exemplos extremos de produções tão conturbadas que os respectivos filmes jamais chegaram a ser feitos ou terminados, como é o caso da adaptação de Duna, por Alejandro Jodorowski, ou de Dom Quixote, por Terry Gilliam, ainda que o segundo tenha sido finalmente produzido em um formato completamente diferente do original quase três décadas depois e há os casos de produções complexas, que levaram diretores e equipes à completa exaustão física e mental, como foi com Fitzcarraldo e Apocalpyse Now. É possível também citar “bateções de cabeça” quase incompreensíveis que ocorreram por trás de Alien 3, Missão Babilônia e Liga da Justiça e uma infinidade de outros filmes ao longo de toda a História do Cinema. Fiasco, minissérie francesa criada por Igor Gotesman e Pierre Niney e distribuída pelo Netflix vem para fazer de todos esses limões uma saborosa e refrescante limonada.

Usando o formato de falso documentário – algo que combina perfeitamente com a proposta especialmente porque as quatro primeiras produções conturbadas citadas acima levaram à produção de documentários sobre elas -, e levando-o até as últimas consequências metalinguísticas, o que a dupla criativa coloca em tela guarda um excelente paralelo com Treta, sucesso recente da A24 distribuído pelo mesmo canal de streaming: o que poderia muito facilmente ser uma obra que usa sua premissa somente para escalar situações absurdas, sendo não mais do que um fim em si mesma, ganha um tempero de conteúdo de qualidade, equilibrando o artifício narrativo central com uma história relevante que vai além dele. E a premissa, aqui, é enganosamente simples como a de Treta, e poderia ser resumida à aplicação extrema da Lei de Murphy – aquela que diz que algo que pode dar errado dará errado – à uma produção cinematográfica, que se torna para raio de uma tragédia atrás da outra em uma sucessão absurda e hilária que serve ao propósito maior de abordar as relações humanas em um ambiente heterogêneo, começando pelo diretor inexperiente, tímido, hesitante e incapaz de dizer “não” Raphaël Valande (o próprio Niney), mas não parando nele, além de ser uma óbvia crítica às produções cinematográficas em si.

Os roteiros escritos pela dupla de criadores e também Nicolas Slomka e Tania Gotesman refestelam-se com momentos constrangedores de pura vergonha alheia e em uma saudável dose de ótimas piadas politicamente incorretas abordadas com um olhar politicamente correto, o que pode não fazer sentido escrevendo assim, mas que faz todo sentido dentro da série. Apesar de o elenco todo ser um daqueles grupos de atores que merecem premiações de conjunto por estar em perfeita sintonia com a proposta, o destaque maior vai mesmo para Niney como um sonhador submisso que deseja mais do que tudo na vida colocar nas telonas um filme que mistura fatos com fantasia sobre os atos heroicos de sua avó rabugenta que o trata mal, mas que salvara mais de uma centena de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Desde o primeiro segundo em que o ator está na tela, ele transmite, mesmo sem falar uma palavra, toda a insegurança e ingenuidade de seu personagem que, porém, esconde características negativas que vão sendo vagarosamente exploradas e discutidas ao longo da minissérie.

Gravitando ao redor do diretor perdido em sua estreia no cinema, vemos seu melhor amigo Tom (François Civil) implorar por um papel no filme e, depois, ganhar um hilário papel extrafilme, o produtor Jean-Marc Torrosian (Pascal Demolon) que não entende nada de nada, mas luta contra o que logo detectam como alguém deliberadamente sabotando o filme e a assistente de produção Magali Verès (Géraldine Nakache) que, mesmo gostando de deixar explícita sua abstinência sexual desde que a pré-produção começara, parece ser a única dos três hierarquicamente mais altos na produção que tem alguma ideia do que faz. Há uma infinidade de outros personagens, da atriz principal por quem Raphaël tem um crush desde adolescente, passando pela maquiadora com bafo de onça e o cozinheiro que, depois da COVID, perdeu olfato e paladar, e chegando até mesmo em Slice (Igor Gotesman no mais metalinguístico exemplo metalinguístico da série) como o líder da equipe que acompanha a produção para fazer um making of, justificando a pegada “documental” do que vemos. E isso sem contar com a família do diretor, claro, inclusive sua avó Huguette Valande (Marie-Christine Barrault), que acaba imiscuindo-se em seu projeto.

Entre inseguranças, egos inflados, mentiras, sabotagens e uma variada gama de situações que vão das mais mundanas como a filmagem de um discurso imbecil do diretor que viraliza na rede até as mais complexas como é a transformação de Tom no hilário Bartabé, Fiasco é um microcosmo de Hollywood e, diria, um retrato sem dúvida cartunesco e propositalmente satírico de toda e qualquer produção cinematográfica – pois mesmo as menos conturbadas têm muitos problemas internos – que arranca risadas, cria tensão e constrói personagens genuinamente interessantes que são capazes de extrair sentimentos contraditórios do espectador, como a flutuação entre raiva e dó que é possível sentir de Raphaël e Tom, a desconfiança e o carinho por Jean-Marc e assim por diante. Isso não quer dizer, porém, que o humor sempre funcione ou que os roteiros evitam repetições, pois o maior problema da minissérie é justamente, a partir de certa altura, entrar em um ciclo de autofagia temática que cansa um pouco, mas que acaba se acertando, mesmo que os 20 minutos finais, por mais catártico que seja, mão combinam muito com o que veio antes.

Bem diferente de seu título, Fiasco é um triunfo de criatividade baseada em realidade que nos permite um vislumbre cômico sobre a Indústria Cinematográfica e um mergulho fascinante por personagens sempre desconcertantes, por vezes irritantes (no bom sentido) em uma sucessão hilária de situações inacreditáveis que geram ótimas piadas, muitas delas caminhando e, por vezes ultrapassando, a linha que demarca o bom gosto, algo que afirmo como um elogio e não como um demérito. E, da próxima vez que assistirmos a um filme, provavelmente lembraremos de alguma coisa que a minissérie abordou e lembraremos dessa pequena pérola francesa.

Fiasco (Idem – França, 30 de abril de 2024)
Criação: Igor Gotesman, Pierre Niney
Direção: Igor Gotesman
Roteiro: Igor Gotesman, Pierre Niney, Nicolas Slomka, Tania Gotesman
Elenco: Pierre Niney, François Civil, Géraldine Nakache, Pascal Demolon, Leslie Medina, Marie-Christine Barrault, Louise Coldefy, Juliette Gasquet, Djimo, Vincent Cassel, Igor Gotesman, Claire Chazal
Duração: 258 min. (sete episódios)

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