A promessa do Toymaker em Risadinha (The Giggle) está realmente se cumprindo: os Deuses do Caos estão aparecendo pouco a pouco em nossa dimensão e cada um promete trazer um desafio medonho para o Doutor. Desta vez, estamos diante de um rebento do Artesão Celestial, alguém que controla todo tipo de música e vibração de ondas sonoras, alimentando-se do vazio ou pelo ruído inerte deixado pela ausência musical. Neste segundo episódio da Nova-Nova Série de Doctor Who, o roteiro de Russell T. Davies segue por um caminho relativamente mais sério, mas ainda marcantemente fiel às facilidades e infantilidades que esta Era propõe seguir. Já deixei claro em Bebês do Espaço que, apesar de não preferir e não ver este caminho de produção como algo bom para a série — e não, eu não considero a abordagem “sci-fi + ciência para crianças” do início da Série Clássica sequer minimamente parecida com esta nova execução –, minha recepção e análise do produto segue bastante positiva.
O Som do Diabo (The Devil’s Chord) é um baita de um episódio divertido, fazendo com que o lado sombrio se manifeste através da execução de um trítono (intervalo entre duas notas musicais que possui exatamente três tons inteiros), gerando uma sombria e dissonante sinfonia que o Senhor do Tempo precisa interromper com urgência. Se vimos o 15º Doutor correr de medo do Bicho-Papão em Bebês do Espaço, aqui ele corre de medo de Maestro porque ainda tem sequelas fortes de um encontro recente com o pai desse Deus do Caos que “partiu sua alma em duas“. Davies fez algo muito importante aqui, que foi definir linhas de ação do Doutor e sua companion em relação aos legionários do Toymaker. Quantas vezes um tipo de truque pode ser usado? Até onde o Doutor pode ir no embate contra esses seres? Quais são as consequências para os envolvidos? Surpreendentemente, o texto cerca bem essas perguntas e não deixa muitas pontas importantes soltas, o que faz do episódio uma aventura mais fechadinha e, ao mesmo tempo, uma boa base para as futuras aparições de personagens desse porte.
A construção dramática é melhor trabalhada e, ainda que tenhamos algo recorrentemente estranho em tela (os pentagramas com notas musicais utilizadas por Maestro em sua manifestação de poder) e uma tenebrosa sequência musical sem sentido momentâneo, o drama do roubo da música da humanidade é mesmo incrível. O compositor Murray Gold já tinha brilhado nas peças escritas para Bebês do Espaço, mas aqui ele está verdadeiramente em seu elemento, e a música para piano e orquestra escrita para a personagem de Ruby mais o divertidíssimo exercício de contraponto para o Doutor ao piano e Maestro no violino são dois destaques que não podemos esquecer. Num episódio que fala sobre música, é claro que a trilha sonora deveria ser uma das camadas técnicas mais bem executadas e, de fato, é o que temos em O Som do Diabo: um incrível trabalho sonoro, com direito até a uma piadinha na fala do Doutor, dando conta do som diegético. Como não amar?
Interpretando uma das personas vilanescas mais legais da série pós-2005, Jinkx Monsoon dá um verdadeiro show como Maestro. Expressões faciais e corporais inesquecíveis; tom e tessitura vocal imensas e uma construção de personagem tão medonha e ao mesmo tempo tão… “infantil” (à la “vilã da Disney” mesmo) que é muito difícil não ver qualidade dramatúrgica em sua criação. As expressões de ira e a maneira como a personagem justifica o caráter musical do episódio (que também envolve os Beatles e uma coleção de brincadeiras com cantores, canções e teoria musical) é de uma força tremenda, chegando a encobrir facilmente a magnética presença de Ncuti Gatwa como Doutor. A propósito, ele e Millie Gibson mudam mais uma vez de figurinos nesse episódio e estão muito bonitos com as roupas dos anos 60. A equipe de Doctor Who sempre foi cuidadosa com o guarda-roupa do elenco, mas a Era desse Doutor já vem se mostrando, desde A Igreja da Rua Ruby, um glorioso desfile de moda. E eu estou adorando isso.
Comentei mais acima sobre a falta de sentido momentâneo para a cena musical ao final desse episódio, e justamente por isso precisamos falar um pouco sobre ela. Por pior que seja (e sim, ela é muito ruim e deslocada, não interessa o que — e se! — será feito com ela no futuro), quero muito crer que a produção não colocaria uma sequência tão grande aqui se não fosse necessário. As piscadelas do Doutor para o público (Maestro também faz isso no início do episódio) e a estranha fala dele sobre suas aventuras “sempre terem uma reviravolta no final” dão a impressão que a concepção dessa temporada, o Universo, a realidade, a existência dos fatos nela mostrados não são exatamente o que estamos vendo. É uma impressão estranha, mas essa horrenda cena musical serviu para me fazer refletir sobre a concepção dessa temporada como quebra de quarta parede, algo bem próximo de WandaVision, por exemplo. Seja como for, temos agora estabelecido o caminho da Nova Era de Doctor Who com dois episódios que nos fazem querer mais. Uma boa farofa televisiva.
Doctor Who – 1X02: O Som do Diabo (The Devil’s Chord) — Reino Unido, 10 de maio de 2024
Direção: Ben Chessell
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: Jinkx Monsoon, Ncuti Gatwa, Millie Gibson, Sherinne Kayra Anderson, Shirley Ballas, George Caple, Philip Davies, Murray Gold, James Hoyles, Laura June Hudson, Simon Jason-Smith, Jeremy Limb, Chris Mason, Johannes Radebe, Kit Rakusen, Josie Sedgwick-Davies, Chan Shoker, Susan Twist, Ed White
Duração: 52 min.