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Crítica | O Vampiro da Cinemateca

O terrorista da forma.

por Frederico Franco
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Experimental, vanguarda, underground, udigrudi, marginal: um pouco de tudo, um pouco de nada. Não lembra as expressões experimentais canônicas do primeiro mundo, mas também não serve exatamente como um cinema marginal. Nenhuma dessas categorias enquadra o pujante trabalho de Jairo Ferreira em O Vampiro da Cinemateca. O próprio diretor, em seu principal livro Cinema de invenção, pontua a importância histórica das correntes aqui citadas, mas não as absorve para o seu pensamento cinematográfico. Invenção. Esse é o vocábulo apropriado por Ferreira para categorizar seu cinema. Trata-se de uma experimentação voltada única e exclusivamente para subverter modelos hegemônicos através de uma inventividade formal. Invenção. É compreender o cinema como um veículo de possibilidades artísticas infinitas, que vão além da simplificação do contar histórias. Invenção. É a forma como protagonista, sendo inclusive autorreferenciada por um dos próprios narradores enigmáticos da película. Invenção. É dar-se conta de que as situações sociais não estão isoladas do cinema; os problemas e características da vida no Terceiro Mundo estão conectadas com as maneiras pelas quais o cinema de invenção se apresenta enquanto estética. Invenção.

Antes de qualquer coisa, cabe compreender que O Vampiro da Cinemateca é uma espécie de manifesto artístico predecessor do livro Cinema de Invenção. É um filme que funciona, num primeiro momento, como um ato teórico, crítico, em relação ao próprio cinema. Suas principais características estéticas, portanto, são aquilo que Ferreira viria a chamar de invenção. Parece ser um reflexo direto da chamada Nova Crítica, de Frederico Morais, que dá ao crítico uma liberdade criativa que vai além da palavra escrita ou meios tradicionais: os críticos (e pensadores), agora também fazem arte como forma de complementar seu objeto de análise. Com sua narrativa caleidoscópica, Jairo Ferreira aponta para uma direção crítica e analítica da realidade cinematográfica brasileira. Transformando-se em um noctívago vampiro, o diretor sai em busca de elementos pitorescos da vida em terra brasilis capazes de fazerem parte de suas invencionices: poetas, filmes estrangeiros, MPB e muita verborragia são alguns elementos centrais que tomam conta do filme. 

Ao se transformar em um Nosferatu cinéfilo e terceiromundista, Jairo Ferreira parece também assumir para si um comportamento antropofágico ao melhor estilo Oswald de Andrade. Às noites paulistanas, tomadas por um ar vampiresco, servem como terreno perfeito para as perseguições fugidias da câmera do diretor. São pedaços da vida real colados um atrás dos outros, destruindo relações lógicas através de uma montagem miríade: imagens justapostas que pouco tem a ver umas com as outras. O olhar de Ferreira, através da câmera de Super-8, substitui suas presas. Tudo o que é visível é automaticamente absorvido por nosso vampiro antropofágico: cinemas de rua, o trânsito, a noite cotidiana. São pingos do sangue da realidade que logo se confundem com sequências que beiram o ficcional – ou falsos documentários. O vampiro, também, não deixa escapar de si toda sua bagagem construída através do cinema. A indústria cultural, trazida aqui por imagens de grandes clássicos do cinema, também é sugada pelo brutal ímpeto do Conde Drácula da invenção. Entre poetas malditos, performances confusas e cinema do Primeiro Mundo, apresenta-se, aqui, uma montagem-colagem que faz parte de uma estética vanguardista brasileira que tangencia diferentes formatos, desde o cinema às artes visuais. 

Todo aquele sangue sugado por Jairo Ferreira, inevitavelmente, encontra-se unido em seu organismo. Todas as mais discrepantes essências absorvidas estão, agora, juntas no mesmo caos imagético e polifônico proposto pelo diretor. Mas isso não significa, de modo algum, que haja quaisquer aproximações semióticas entre esses elementos; é razoável concluir, inclusive, que seus distanciamentos sejam, na verdade, o grande barato dentro disso tudo. Bruce Lee acompanhado de uma marchinha de Carnaval não necessariamente quer dizer algo – a quem interessa tentar decifrar possíveis significados ocultos nessa correlação? Adotando uma postura similar a do diretor, de leveza e bom humor, a dinâmica inventiva entre o ator e uma trilha sonora que não lhe diz respeito por si só funciona como um artifício cômico, de curtição. Em outro momento, por exemplo, Milton Nascimento é colocado frente a frente com o lendário Jimi Hendrix. Estaria Jairo Ferreira tentando estabelecer uma competição entre ambos? Provavelmente não. San Vicente pouco tem a ver com o wah wah característico de Hendrix; esteticamente estão em pólos diferentes: violão versus guitarra elétrica. Representam, isso sim, uma distância oceânica entre a música produzida no Brasil da ditadura e àquela presente em manifestações anti-guerra – pensando agora, não seria de todo mal uma tentativa de aproximá-los politicamente, mas é assunto para outro formato. Ainda nessa levada, o diretor faz questão de parodiar em cima da imagem de um dos grandes ícones do cinema norte-americano e mundial: Charles Foster Kane, protagonista de Cidadão Kane. Com uma narração envolvente, o personagem de Orson Welles é retirado do alto de sua glória e passa a ser tratado como um político corrupto, sendo inclusive chamado de fascista

O Vampiro da Cinemateca não é um filme fácil de ser digerido. Sua experimentação (ou invenção) solta faz com que seja difícil encontrar pontos de ancoragem temporal ou visual; nada parece fazer sentido ou ter relações entre si. Jairo Ferreira apresenta uma não-linearidade brutal, destruindo quaisquer resquícios de narrativa. Nosso Vampiro, em seu manifesto, parece ser contrário a lógicas discursivas baseadas primordialmente na compreensão da obra: no filme, são apresentadas diversas situações desconexas entre si, deixando ao espectador decidir se algo ali faz algum sentido. Revolução de estruturas, é isso que Ferreira concebe aqui. Não existem protagonistas, linhas narrativas, linhas temporais ou coisas do gênero. É como bem diz a narração do filme: TERRORISTAS DA FORMA. Não existem ações que conduzem o espectador em direção a algum lugar; a forma nos leva a lugar algum, sendo ela própria o grande x da questão. Faço das palavras de Júlio Bressane as minhas: o que importa é exprimir, o que se exprime não importa. Tudo que o diretor lança em nossa direção são pedaços de uma realidade incompleta, dando ao espectador a liberdade e função de extrair de sua invenção algo capaz de mexer em seu âmago.

O Drácula Jairo Ferreira também dá espaço para possíveis essências dúbias de seus personagens, que parecem pendular entre a verborragia e o não verbal. A figura de um poeta, recitando seus mais belos versos, surge como impulso intelectual dentro da obra. Por outro lado, é cedido espaço para aqueles que, fugindo da intelectualidade, adotam uma comunicação não-verbal, marcada por grunhidos, falas confusas. Sem perder sua veia crítica, Ferreira não deixa barato para outra figura central do cinema brasileiro: o cinemanovista Glauber Rocha. Sua obra, marcada por alta intelectualidade, é atacada por nosso vampiro, que diz que isso é o que distancia sua obra do experimental e, sobretudo, da invenção. Você nunca será o Maiakovski brasileiro, brada o narrador. 

Chegada ao fim a trajetória vampiresca de O Vampiro da Cinemateca, uma possível conclusão pode ser levantada. A irreverência de Ferreira, aliada a sua poderosa inventividade, está dedicada a reconstruir uma memória estética brasileira por meio de um grandioso fluxo de pensamento. Essa reconstrução, contudo, nem sempre surge a partir de elementos estritamente nacionais ou próprios da realidade brasileira. Ao longo do filme, como visto, são feitas referências diretas ao estrangeiro, contrapondo-as com aquilo feito em solo brasileiro. Em todo o caso, essa relação proposta por Nosferatu à brasileira é uma clara alusão à ideia vanguardista que, antes de desconstruir, expõe as regras do jogo hegemônico, surgindo, assim, tensionamentos e oportunidades para a subversão.

O Vampiro da Cinemateca (Brasil, 1977)
Direção: Jairo Ferreira
Roteiro: Jairo Ferreira
Elenco: Júlio Calasso, Jairo Ferreira, Luiz Alberto Fiori, Jards Macalé, José Mojica Marins, Carlos Reichenbach
Duração: 64 minutos

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