Peço licença, caros leitores, para a abordagem biográfica deste artigo. Ao longo de minha jornada, cresci escutando diversos estilos musicais e sabia da existência de uma cantora chamada Madonna, mas sequer lembraria um título de música ou videoclipe produzido pela mesma. As coisas mudaram em 2003. Este era o primeiro ano que havia desistido de curtir o carnaval de Salvador, me entregando a um ritual que faz parte da minha vida até então: locar (hoje, assistir ao meu acervo ou no streaming) diversos filmes e passar os dias de folga comendo pipoca e acrescentando informações ao meu projeto pessoal de cinefilia.
Dentre as produções escolhidas, um me chamou muito a atenção: Moulin Rouge – Amor em Vermelho, musical dirigido pelo australiano Baz Luhrmann, que de maneira bastante orgânica, conseguia fazer um pastiche da cultura pop do século XX, temperando a narrativa com doses discretas de cultura erudita, num dos maiores espetáculos cinematográficos produzidos nos últimos anos. Entre os números musicais mais atrativos, estava Sparkling Diamonds, trecho de apresentação da personagem Satine, interpretada por Nicole Kidman em um fabuloso desempenho musical, e Like a Virgin, uma canção reconfigurada para o filme, canção que tinha a impressão de que já “havia escutado em algum lugar”.
Ao pesquisar, descobri as devidas referências. Eram canções bastante populares da cantora Madonna. Mais adiante, ao aprofundar as pesquisas e encontrar algumas curiosidades de bastidores nos extras do DVD, descobri que, segundo o diretor, a personagem Satine possuía traços de Marilyn Monroe, Marlene Dietrich e Madonna. A partir daí, surgiram as minhas primeiras fagulhas de curiosidade: mas, afinal, “quem é essa garota”? Neste percurso, transformei os insights que surgiam com uma investigação mais organizada, que se transformou no livro Madonna Múltipla: Cinefilia e Videoclipe, lançado em 15 de janeiro de 2015.
Além de ampliar o meu repertório cinematográfico, a concepção do livro me permitiu enxergar Madonna como uma artista revolucionária, dona de um estilo muito próprio, responsável por catalisar discussões sobre gênero, política, dentre outros debates pertinentes para uma sociedade que reflete sobre si mesma. Foi um acontecimento. Consegui levar o conteúdo para rádios, televisão, sala de aula, demonstrando com fascínio que a artista ia muito além daquilo que eu tinha como imagem em relação ao seu longo caminho pavimentado na cultura pop. Madonna importava, importa e ainda importará muito como reflexão sobre o seu fazer artístico, numa afirmação que já responde aos leitores o título interrogativo deste artigo.
Mas, então, Leonardo Campos, “quem é essa garota”?
“Só Madonna, ela disparou. Como a Cher. Guarde bem”. Foram estas as palavras da incipiente personalidade pop ao jornalista, e, hoje, biógrafo de Madonna, J. Randy Taraborelli, nos idos dos anos 1980. Era o começo de uma carreira meteórica, ligado ao campo da música, mas dialogando, como o Manifesto das sete artes, com a dança, a literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema. A jovem e rebelde aspirante ao posto de atriz, mas que conseguiu mesmo se fincar no terreno musical nasceu em 16 de agosto de 1958. Desde os anos 1980, a artista desenvolve uma carreira múltipla: cantora, atriz de cinema, de teatro e de videoclipe, produtora, empresária, escritora e, mais recentemente, diretora de cinema. Ao operar mudanças e gerar polêmica em trabalhos que discutem temas variados, mas que gravitam todos em torno do feminino, da homossexualidade, da política e da religião, Madonna conseguiu longevidade no efêmero jogo da cultura pop. Ao longo de seus 40 anos de participação ativa no âmbito da cultura, a artista, de forma bastante esperta, conseguiu dialogar com a mídia e usá-la a seu favor, mesmo que muitos não tenham acreditado que ela passaria do primeiro álbum.
Madonna passou longos tempos estudando fotografia, filmes em preto e branco e pinturas. Era uma atitude oriunda de alguém com espírito empreendedor e criativo. No jogo do pop, sabemos que não se consegue atingir a longevidade se não tiver uma ideia firme sobre imagem. E por aqui, estamos falando sobre alguém que desde jovem sabia da importância desta questão. Quando Madonna surgiu, os videoclipes ainda eram uma novidade para a indústria do entretenimento. Foi uma época de grandes empreendimentos na seara do audiovisual, e um deles, o surgimento da MTV, emissora que começava a engrenar. Foi neste espaço que a artista, ambiciosa e atenta ao mercado, apostou no formato do videoclipe para criação da sua imagem perante a mídia. Conhecida como a Rainha do pop, constantemente mudou a sua imagem entre 1980 e 1990, reinventando-se na efêmera malha da cultura pop, mantendo certa autonomia na indústria fonográfica.
Os seus primeiros singles renderam videoclipes ainda no formato mais rudimentar: com edição simples e apresentando a cantora em poses provocantes. Everybody, Holiday e Lucky Star promoveram o trabalho da cantora, mas Borderline pode ser considerado o maior destaque antes do estouro de Like a Virgin, em 1984. A canção alcançou bastante sucesso nas paradas musicais. O bom desenvolvimento do álbum estava ligado, especialmente, ao processo de produção do videoclipe, um dos principais da carreira da artista. Neste período, temos como as principais produções, Like a Virgin e Material Girl, além da aclamada incursão no cinema com Procura-se Susan Desesperadamente. Com estes e outros videoclipes, a sua imagem provocante se cristalizou, reforçada pela icônica apresentação na MTV, em 1984, quando Madonna surgiu vestida de noiva, cantando a canção sobre amor e virgindade, desenvolvendo uma atuação bastante sensual para as câmeras, parodiada por ela mesma em 2003, com a participação das suas sucessoras Britney Spears e Christina Aguilera.
Depois disso, tivemos discussões das mais diversas em suas canções e videoclipes: aborto (Papa Dont Preach), racismo e religiosidade (Like a Prayer), a liberdade sexual feminina em tempos de repressão (Erotica e Justify My Love), a importância do amor próprio, do potencial daqueles que conseguem se expressar e da descoberta do nosso potencial interno (Vogue e Express Yourself), a política armamentista e o imperialismo estadunidense (American Life), a necessidade de curtir a vida e se entregar ao diletantismo sem se importar com a opinião alheia (Hung Up), a fugacidade do tempo e as acelerações da tecnologia (4 Minutes), o hedonismo, etarismo e as ilusões da fama (Hollywood), dentre tantas outras produções que tornam a catalogação por aqui exaustiva e impossível para os limites editoriais do texto. Devo então, delinear que um dos principais pontos desta jornada foi descobrir algo adicional na musicalidade que me atraiu ainda mais depois da saída do armário e da plena vivência como homem gay assumido. Muito além da pista de dança, Madonna entrega reflexão em seus espetáculos, videoclipes e canções. São jornadas roteirizadas com mensagens de temáticas múltiplas.
Afinal, Madonna ainda Importa Mesmo?
Em linhas gerais, Madonna é uma artista múltipla. Atriz, cantora, dançarina, empresária e mais recentemente, diretora de cinema. Ela até se arriscou e escreveu livros infantis numa determinada fase. Estas foram informações apresentadas no começo desta reflexão escrita, reafirmadas neste momento do texto, que não penso como uma consideração final do processo, mas como a materialização de pensamentos, observações, conversas, palestras e minicursos ministrados sobre Madonna, a história e a linguagem do videoclipe, ainda um dos produtos audiovisuais mais importantes da indústria cultural contemporânea. Com 40 anos de carreira, muitos sucessos e fracassos, polêmicas e debates, Madonna se cristalizou na cultura pop como uma mulher de opinião, que se posiciona, brinca em alguns trabalhos e se diverte, mas possui constância na sua agenda de reflexões sobre todos os tópicos temáticos abordados anteriormente. Mesmo que, artisticamente, alguns dos seus trabalhos não tenham a coesão e a reverberação de outros excelentes momentos do passado, a Rainha do Pop deixou sua marca, traz para o contemporâneo uma pertinente discussão sobre ageísmo, algo que no ramo do entretenimento, acomete muito mais as mulheres do que os homens.
Madonna ainda importa sim. E, conjugando em outros tempos este verbo, importará enquanto houver pessoas dispostas a reconhecer a sagacidade de seu trabalho e compreender as suas propostas conectadas ao longo de quatro décadas de muito empenho e trabalho. Ela bem sabe que não é a maior cantora do mundo, tampouco a melhor atriz. Seus talentos vão para direções diferentes e o seu grande legado e impacto cultural é saber mesclar habilidades e competências em prol da criação de algo coeso diante de uma carreira planejada cuidadosamente, a enfrentar obstáculos constantes como qualquer ser humano que surge do nada e consegue alcançar um status que ela alcançou, abrindo as portas para outras artistas e transformando o entretenimento em algo além da pura diversão.