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Crítica | O Sol por Testemunha

Alain Delon brilha mais do que o sol.

por Ritter Fan
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Apesar de não ter sido a primeira adaptação audiovisual de O Talentoso Ripley, romance de 1955 em que Patricia Highsmith apresentou seu mais famoso personagem, honra essa que ficou com a série americana em formato de antologia Studio One logo no ano seguinte, O Sol por Testemunha foi a primeira obra cinematográfica que levou o sociopata Tom Ripley às telas de cinema e, de quebra, foi o filme que efetivamente transformou Alain Delon em uma estrela. Dirigido por René Clément em uma coprodução franco-italiana, o longa é sem sombra de dúvidas, um perfeito veículo para o célebre ator francês e uma interessante, ainda que aguada e, diria mais, acovardada abordagem do material fonte que começa muito bem, mas perde seu elã a partir da metade.

Mas, antes de eu mergulhar nos aspectos que desgosto da obra e que, reconheço, pode gerar discussões com aqueles que gostam sem reservas do filme (pessoas essas muito bem acompanhadas por Martin Scorsese e Akira Kurosawa, vale dizer), comecemos pelo que é absolutamente inegável: Alain Delon encarna Tom Ripley irretocavelmente em um papel que merecidamente o destacou na época e que até hoje é um de seus melhores, mesmo considerando sua longa carreira nos holofotes. Com sua beleza ímpar que Clément corretamente usa e abusa sem puder algum, Delon constrói um personagem que funciona quase que unicamente na linguagem corporal, sejam as feições de seu rosto, sejam seus trejeitos e postura. O olhar de Ripley é penetrante e, na mesma medida em que revela seus sentimentos mais à superfície, esconde outros, mais sinistros, mais sombrios, que Delon esconde também atrás de sorrisos e de uma calma que beira à impassividade.

A sequência em que Ripley é expulso da cabine do barco à vela a caminho de Taormina para que seu “amigo” Philippe Greenleaf (Maurice Ronet) possa namorar em paz com sua noiva Marge Duval (Marie Laforêt) é antológica nesse sentido. Há  um quê de brincadeira, de jocosidade entre os dois, mas também de animosidade, de sentimentos antitéticos não conciliáveis, que resulta em Delon sentando-se ao timão e olhando de maneira penetrante, assassina mesmo para a porta que se fecha. E o ator parece fazer isso sem o menor esforço, fazendo de seu Ripley, com isso, um personagem que é extremamente relacionável e ao mesmo tempo odiável, com um forte verniz de inveja, de querer ser Philippe, de querer ter o que Philippe tem, que faz com que o espectador tenha dúvidas sobre o que sentir, sobre como reagir. É, arriscaria dizer, assustador até, pois Delon chega até mesmo a desparecer atrás de seu Tom Ripley.

A premissa do romance original é excelente e o roteiro que o próprio Clément escreveu ao lado de Paul Gégauff já insere o espectador diretamente na ação, com Ripley em Roma farreando com Philippe, ambos sabendo o porquê de eles estarem juntos: Ripley receberá cinco mil dólares do pai de Philippe se ele conseguir convencer Philippe de retornar à São Francisco e parar de ficar vagabundeando com sua fortuna pela Europa. O que Philippe não sabe de verdade, mas talvez sinta, já que Ronet vive seu personagem de maneira reservada, mas inteligente, é que Ripley parece desejar muito mais do que aqueles “trocados” oferecidos pelo magnata americano; ele quer aquela vida, ele quer aquela despreocupação, o que, claro, me faz retornar à Alain Delon e sua capacidade de transformar sua beleza em um símbolo da mais pura futilidade embebida em generosas camadas de inveja.

No entanto, a partir do momento da esperada reviravolta no barco de Philippe, em que Ripley finalmente revela de vez sua verdadeira face ao espectador, O Sol por Testemunha começa a perder seu fôlego e suas nuanças, transformando-se em um filme de polícia e ladrão. Um bom filme de polícia e ladrão, não tenho dúvida alguma em afirmar, mas, mesmo assim, uma obra que perde seu diferencial, que joga um jogo facilitado por sequências de eventos convenientes que são editadas com uma pressa que não se justifica e que chega a um final moralista, quase banal, que subverte e retira toda a força da obra original de Patricia Highsmith. E isso sem contar que inexiste qualquer subtexto no Tom Ripley de Alain Delon. Ele é exatamente o que a superfície e sua linguagem corporal mostra, algo bem diferente do que podemos encontrar no romance e no longa de 1999 de Anthony Minghella (que, por seu turno, também peca ao transformar subtexto em texto, mas pelo menos apresenta o subtexto).

E olha que eu de forma alguma espero que uma adaptação seja subserviente à obra original. Nada poderia estar mais longe da realidade, algo que fica evidente em outras críticas minhas. Meu ponto é que o final banal de O Sol por Testemunha simplesmente não combina com toda a construção da narrativa e parece uma daquelas concessões que o diretor teve que fazer por exigência dos engravatados donos do dinheiro. Mesmo considerando que o filme nasceu em plena Nouvelle Vague, movimento que mudou o Cinema europeu e mundial e mesmo que Gégauff tenha conexões com ele, não se pode dizer que O Sol por Testemunha é um exemplar do estilo, mas é interessante e consideravelmente frustrante notar como ele, mesmo tendo tanta influência ambiciosa e desafiadora ao seu redor e, também, um material fonte que nunca se trai, acaba percorrendo um caminho consideravelmente padrão, talvez até burocrático, que desinfla a potência do Tom Ripley de Alain Delon e o transforma em apenas mais um vilão, algo que não acontece completamente, claro, porque é Delon ali.

O Sol por Testemunha tem uma excelente primeira metade seguida de uma frustrante segunda parte que quebra seu ritmo e que impõe uma espécie de indevida ordem a um filme que tinha tudo para ser uma obra-prima transgressora. Mas a estrela de Alain Delon brilha do começo ao fim e isso é suficiente para tornar toda a jornada uma experiência audiovisual valiosa.

O Sol por Testemunha (Plein Soleil – França/Itália, 1960)
Direção: René Clément
Roteiro: René Clément, Paul Gégauff (baseado em romance de Patricia Highsmith)
Elenco: Alain Delon, Marie Laforêt, Maurice Ronet, Elvire Popesco, Erno Crisa, Frank Latimore, Billy Kearns, Ave Ninchi, Viviane Chantel, Nerio Bernardi, Barbel Fanger, Lily Romanelli, Nicolas Petrov, Paul Muller, Jacqueline Parey
Duração: 115 min.

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