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Crítica | Argila (1940)

Um sonho romântico.

por Fernando JG
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A construção da identidade do cinema brasileiro nunca foi objeto dado na arte nacional. Pelo contrário, demorou a se manifestar e foi apenas devidamente colocada em jogo depois dos anos pós independência política em 1822 e posteriormente em 1922, quando desvinculamos das influências artísticas externas. A ideia é romper com a importação estéril e modular um algo que era nosso. O Cinema Novo já vinha postulando algo do tipo: Glauber Rocha e companhia fundam, de maneira mais ou menos alegórica e hermética, a chamada “identidade nacional” no Cinema – aspecto um tanto abstrato, eu sei, mas que pode ser resumido de maneira rasa como o conjunto de características que buscam definir a nossa individualidade enquanto povo. Algo um tanto quanto complexo e abstrato para se discutir num texto curto de crítica cinematográfica como faço aqui. De alguma forma, Argila, de Humberto Mauro, joga essas cartas na mesa. 

De estética definidamente romântica, a obra passeia sobre a possibilidade de criar ao seu bel prazer uma identidade no curso do longa-metragem: a mise-en-scène tropical, a natureza, as frutas na mesa, a indígena que dança ao final, os vasos com arte nativa, as referências a Casimiro de Abreu e ao Brasil enquadram este filme como um precursor direto do que viria, sobretudo, em Joaquim Pedro de Andrade e suas brincadeiras cinemanovistas de “descobrir o Brasil”. Se o filme se apoia numa estética romântica é porque ele deliberadamente intenta trazer a seara do “nacional” para a discussão fílmica. E romântico neste filme diz respeito a um sentido duplo: de romantismo enquanto movimento artístico-social do século XIX e romântico de ser um drama sobre amor. Cinicamente, Humberto Mauro vai desenvolvendo e concluindo seus objetivos ao som de um belíssimo Heitor Villa-Lobos e de recitações poéticas graciosas. 

Moradora da Ilha de Marajó, a rica viúva do falecido Miranda, Luciana, enamora-se de Gilberto, escultor de origem simples cujo trabalho com vasos artesanais lhe rende o suficiente para manter a si e a sua esposa. Entre idas e vindas de amor, Luciana e Gilberto se encontram e se apaixonam repentinamente, provocando uma crise no casamento do escultor, que abandona repentinamente sua noiva e entrega-se, mesmo que pelas beiradas, à sua nova paixão. Ao oferecer uma cerâmica de alto valor artístico para Luciana, algumas coisas saem do controle diante da fofoca de que ambos estariam se relacionando. Sem tempo para desmentir tudo o que se diz, Gilberto e Luciana precisam decidir se vale a pena mergulhar nessa paixão ou se continuam sendo bons amigos que prezam um ao outro.

Uma mulher ousada para os anos 40, Luciana é uma protagonista arriscada pois, de certo modo, antecipa atitudes e ideias do que seria a mulher moderna do pós anos 60 e 70, cujos ideais foram pregados pelos movimentos de libertação sexual, de gênero etc. Mais do que isso, Luciana é a mulher varguista, isto é, do período de Getúlio Vargas, cujo direito ao voto lhe garante importância individual como parte constitutiva do jogo social. Decidida, madura, inserida num triângulo amoroso e sem medo do julgamento social, a protagonista interpretada por Carmen Santos é um primor. Atuação destemida e de personalidade. Como imaginamos que seria, qualquer um que divida a tela com ela será ofuscado pelo seu talento irradiante. Não espanta o fato de que Carmen Santos, a atriz por trás de Luciana, tenha produzido e pensado o filme junto com Humberto Mauro. 

O filme tem como eixo regulador alguns temas principais, um deles está na discussão de classes e na ideia de conciliação entre elas, tanto é que não há um estranhamento na aproximação amorosa entre um ceramista e uma aristocrata; um segundo está no tema artístico, do labor da poiesis, da técnica poiética que encontramos em Gilberto no seu ofício, que dialoga com o próprio filme enquanto um fazer artístico, isto é, o famoso tema do “artista”; um último deles, facilmente identificado, é o trabalho com a busca da identidade nacional, que ampara-se também no eixo político do varguismo. É um filme produto do seu tempo e do seu meio. 

Argila, o filme, articula um enredo sobre um amor difícil e platônico com questões em voga no seu contexto histórico. Do cacho de bananas inicial, atravessando a personagem de Carmen Santos ao desfecho em que Gilberto melancolicamente na sua despedida acena que “tudo é barro… argila” vemos signos muito bem definidos cujas significações são muito evidentes na construção do todo fílmico. É um sonho romântico brasileiro, onde a conciliação é sempre a via possível, enquanto a natureza idílica é a condutora da paixão. Um trabalho de roteiro sóbrio no qual todo o texto é lúcido e objetivo. Se inspira mas não adapta nenhuma literatura, como era comum nos anos anteriores e por isso tem sua identidade num roteiro original. Argila talvez tenha sido o melhor representante dos anos varguistas no Cinema e atende expectativas tanto estatais da burocracia governista quanto cinematográfica do ponto de vista técnico e estético. 

Argila (Brasil, 1940)
Direção: Humberto Mauro
Roteiro: Humberto Mauro
Elenco: Carmen Santos, Celso Guimarães, Lídia Mattos, Floriano Faissal, Saint-Clair Lopes, Bandeira Duarte, Mauro de Oliveira, Pérola Negra, Roberto Rocha, Anita Otero, Chaby Pinheiro, Geny França, Bandeira de Mello, Eduardo Viana, Emilinha Borba,, Oswaldo Teixeira, Roquette Pinto
Duração: 90 min.

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