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Crítica | Contra a Interpretação, de Susan Sontag

Racionalizando uma mania.

por Luiz Santiago
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O que Susan Sontag alveja em Contra a Interpretação é definido por ela mesma como o “ato mental consciente que se utiliza de códigos e regras para traduzir uma obra“. Escrito em 1964 e posteriormente incluído em uma compilação renomada de 1966, o ensaio se concentra na crítica literária, embora suas análises se estendam ao cinema e às artes visuais, oferecendo perspectivas que podem ser extrapolados para diversas outras formas de expressão. Para ela, o problema não está na “interpretação” entendida como “leitura, discussão ou contextualização ampla” de uma produção artística. Seu alvo é a postura dos indivíduos que acreditam que a forma (vista como dispensável) está separada do conteúdo (visto como essencial). Para estes indivíduos, o conteúdo é o que dá valor à arte, sendo necessário erguer, diante do fenômeno, um mundo de sentidos, domando o que foi apresentando e tornando a obra submissa a um raciocínio que, no final das contas, substitui o produto por um pensamento decodificador, inserindo algo que o artista nunca se propôs a dar.

Tomando como ponto de partida as pinturas rupestres e a existência mágica e ritualística dessa arte para as sociedades antes da invenção da escrita, a autora nos prepara para momentos diferentes quanto ao tratamento das criações humanas. É possível entender o mesmo padrão em inúmeros fenômenos culturais, mas sua aplicação à arte cai como uma luva. O encantamento da produção nas paredes das cavernas nos faz pensar em uma realização que simplesmente “é“; cujo propósito formal tem importância e o conteúdo está mais ligado a um inconsciente coletivo de captura dos espíritos da caça, de marcação de uma identidade para reafirmação da pessoa (as mãos pintadas) ou exibição de momentos importantes, como cenas de dança e cenas de fogueiras. Não há o que se “interpretar” com regras e códigos aí. A beleza, o uso, as leituras e críticas possíveis a esta produção, em seu contexto histórico e sua linguagem artística, estão muito bem ajustados à sua existência como obra de arte.

Na sequência, a autora aponta dois eventos históricos sobre essa mudança de abordagem. Primeiro, a teoria platônica da mimese, da arte como imitação do real e como produção inútil (afinal, um desenho de uma cama não serve para alguém dormir). Depois, a teoria aristotélica que não discorda da “imitação do real“, mas da “inutilidade“. Para Aristóteles, a arte é uma forma de terapia, por “despertar e purificar emoções perigosas“. E por fim, a produção crítica no final da Antiguidade Clássica, em um momento onde o mito perdia espaço para o pensamento racional e foi necessário um novo olhar para os textos antigos, transformando os “mitos” em “eventos simbólicos” ou em “significados ocultos de ações reais“. Nessa primeira leva de interpretações interferidoras, Zeus traindo uma de suas esposas não era apenas “Zeus traindo uma de suas esposas“, mas sim “a dominação da delicadeza pela barbárie disfarçada“. Após essa curta, mas sólida e muito bem construída base histórica, a autora explica a sua visão a respeito dos desmandos da interpretação engessada, do mal que ela faz à arte e do vício que impõe à crítica, aos leitores, espectadores e ouvintes.

Desde 2009, quando comecei a escrever crítica de cinema, me deparo com comentários de “críticos de críticos” dizendo coisas do tipo “o sr. Santiago obviamente não entendeu o filme“. Esses indivíduos rejeitam uma leitura cuidadosamente formal da produção e majoritariamente louvam uma obra ruim apenas porque o seu conteúdo, as ideias/causas/grupos que defende, sua importância histórica ou os seus “significados ocultos que só os iniciados e os iluminados entendem” condizem com o que esse indivíduo gosta. Leiam os comentários de A Bruxa (2015) e O Poço (2019) e vejam dezenas de exemplos. O mesmo acontece com obras ligadas a caminhos políticos, sociais ou ideológicos, como os horrendos Medida Provisória (2022) e 20 Dias em Mariupol (2023), louvados por espectadores por “falarem e mostrarem coisas importantes“… como se isso fosse um critério minimamente válido de linguagem cinematográfica, estética, narrativa, formal ou até mesmo de conteúdo, que merecesse consideração avaliativa. Uma das melhores filmografias da História do Cinema, a do japonês Yasujiro Ozu, esteve focada nas coisas mais banais, simples, desimportantes da existência, e ainda assim, é praticamente impossível você encontrar um filme ruim do diretor. Os três minutos que o espectador olha para uma chaleira fervendo, num plano médio, com a câmera no tatame e um ponto de vista frontal num ambiente onde só se vê parte da sala e a fumaça da chaleira, não precisam de interpretação. Não possuem significados misteriosos nem milhares de referências condicionais “para se entender a obra“. Todavia, elas dizem toneladas de coisas.

A experiência artística é algo bastante pessoal, e a arte, obviamente, tem o seu contexto histórico, biográfico, político, jurídico, mercadológico, social, cultural e estético. Se comentados diretamente, eles nos dão páginas de conteúdo para debate e crítica. Uma pintura sobre os Bandeirantes não precisa de interpretação regrada. O estudo do que ela representa, a descrição de como está representada e o objeto escolhido para ser representado já dizem tudo, é só trabalhar em cima deles! Notem que, neste exemplo, não foi necessário cavar significados ou procurar detalhes imperceptíveis, quando apenas a forma aliada ao conteúdo e ao contexto fornecem o que é necessário para uma excelente crítica. O mesmo se dá com os filmes. Se a sua leitura não passa pelo crivo da unidade fílmica (ver o produto em sua totalidade, não apenas os seus pedacinhos hermeticamente isolados em supostos “sentidos grandiosos“); se você não vê, ouve e sente a obra (antes, passa o tempo inteiro traduzindo-a para o que você supõe que ela quer dizer); se você esvazia a obra para erguer, em torno dela, toda uma gramática de explicações externas, que substituem, negam ou contradizem o que está posto na tela; e principalmente, se você acredita que a sua leitura é a única correta, e quem não diz o mesmo que você é intelectualmente inferior porque “não entendeu o filme“, é exatamente para tipos como você que Susan Sontag escreveu este ensaio. E é este tipo de interpretação que ela condena.

Evidente que a proposta não exclui os erros de uma leitura ou crítica, mas esses casos são mais fáceis de identificar e tratar, e acabam virando anedota. Comigo, a última vez que aconteceu foi com Assassinos da Lua das Flores (2023). Minha linha fina na crítica do filme foi esta aqui: “o massacre de um povo, do ponto de vista de seus algozes“. Note que isto não é uma interpretação. O filme é, indiscutivelmente, o ponto de vista dos vilões para o que aconteceu com o povo Osage. Ou seja, este é um apontamento técnico-narrativo, e dizer o contrário disso está formalmente errado. Pois bem, em uma rede social, escreveram isso aqui para mim: “jovem que assiste filme com celular na mão dá nisso“; “tem certeza que você assistiu ao filme?“; “a pessoa tem que ser um analfabeto funcional para dizer uma coisa dessas“. Percebem porque o ensaio de Susan Sontag não se confunde com essa seara? Porque a discussão, nesses casos, não é simbólica, não fala de signos, não está condicionada a um referencial externo, mas a um elemento formal que nem todo mundo, por motivos óbvios, tem conhecimento. É um problema, mas não da dimensão dos mestres-interpretadores de plantão.

É verdade que temos tendência a interpretar tudo. Mas há formas diferentes de interpretar, como a autora deixa claro em seu ensaio. Esse modelo interpretativo que ela critica é aquele que empobrece as coisas. Essa “abordagem destravadora de mistérios” deve ser eliminada do vocabulário dos críticos e da procura do público. A crítica, neste ponto, será uma apresentadora de possibilidades contextuais, técnicas, dramáticas, estéticas, históricas, etc., numa conversa sobre a obra a partir de uma tese do autor, que será, obviamente, um recorte. Uma crítica “não fala sobre tudo“, mas fala do necessário para sustentar o argumento do autor, que também não poderá desprezar a sua sensibilidade e, acima de tudo, não deve focar em solucionar discrepâncias e negar o cinema como ele foi feito para ser consumido: uma arte que pode comunicar, entreter, proporcionar fuga sob os mais diversos aspectos emocionais e intelectuais, numa perspectiva plural e transparente. Deixe de procurar sentidos profundos e consuma os filmes… como filmes. O que é para ser entendido, se for um bom filme (percebe agora por qual caminho guiamos a nossa análise?), estará lá. O resto é um desnecessário manual de instruções.

Contra a Interpretação (Against Interpretation) — EUA, 1964
Primeira publicação: Evergreen Review Vol.8, número 34 (dezembro de 1964)
Primeira compilação: Editora Farrar, Straus and Giroux, 1966 (com capa de Ellen Raskin)
Autora: Susan Sontag
No Brasil: Contra a interpretação e outros ensaios (Cia das Letras, fevereiro de 2020, com capa de Claudia Warrak) Tradução: Denise Bottmann
392 páginas (edição da Cia das Letras)

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