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Crítica | O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal

O mais antigo compilado de cozinha em língua portuguesa.

por Luiz Santiago
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Considerado “o mais antigo manuscrito de cozinha em língua portuguesa” até hoje conhecido, O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal é uma obra muitíssimo interessante em seu aspecto histórico, antropológico, sociológico e cultural. Trazendo 67 receitas espalhadas por quatro cadernos temáticos — Manjares de Carne, Manjares de Ovos, Manjares de Leite e Cousas de Conservas (que também aborda a criação de doces) — esses manuscritos de cozinha com 73 folhas e encadernado em carneira pertenceu a Maria de Guimarães (1538 – 1577), filha do infante D. Duarte e neta do rei D. Manuel II, que levou a obra consigo para a Itália, quando casou-se com Alexandre Farnese, Duque de Parma e Piacenza, em 1565.

Na versão que eu li da obra, publicada pela Universidade de Coimbra em 1967 (confiram a ficha técnica ao final da crítica!), há uma grande quantidade de textos de apoio, apêndices e outras incursões literárias de diversas épocas que tornam o volume bem mais interessante do que uma simples exposição transcrita, adaptada para o português contemporâneo e com fac-símiles do original. Uma das discussões ali feitas, por exemplo, reflete sobre a datação dos manuscritos. Pela análise da grafia e do vocabulário utilizado nas receitas, sabe-se que uma parte dos manuscritos são anteriores ao nascimento da própria Infanta (final do século XV); enquanto outra parte data do início do século XVI. O que se sabe, ao certo, é que essas receitas escritas por diversas mãos, ao longo das muitas décadas, foram compiladas a pedido da futura Duquesa de Parma e Placência, uma mulher versada em línguas clássicas, filosofia e outras ciências humanas, além de ser uma pessoa fervorosamente religiosa, e o livro foi levado por ela para a Itália, país onde morreria em 1577, aos 39 anos de idade.

A elaboração de pratos com vários tipos de carne (de rebanhos, aves e caça, mas não de peixes, o que me causou espanto), ovos, leite e frutas, ganha aqui um caráter histórico de grande valor. No período em que essas receitas foram escritas/reescritas/copiadas/modificadas, Portugal estava construindo o seu império ultramarino, prosperando economicamente e mudando culturalmente o seu paladar com os produtos que retirava do Brasil, da África e da Ásia. Em 1516, por exemplo, o primeiro engenho de cana-de-açúcar de que se tem notícia foi construído no Brasil, na Feitoria de Itamaracá (Pernambuco). Portanto, não é de se espantar que antes mesmo de abrir o primeiro caderno, após uma primeira dica de “como engordar frangos com leite“, tenhamos uma receita com esse baita título aqui: “Vinho de açúcar que se bebe no Brasil, que é muito são e para o fígado é maravilhoso“. Também é notável a presença de inúmeras especiarias que aparecem nas receitas, produtos caros à época e que fazem sentido estar num compilado de uma integrante da corte.   

Para um leitor contemporâneo, especialmente um brasileiro, ver tantos ingredientes conhecidos é também um sinal da ligação de Portugal com a construção da nossa gastronomia. Eu me espantei com a quantidade de açúcar e ovos (especialmente as gemas) que se utilizava nos pratos. Em praticamente todos os textos vemos os termos “deitar ovos” e “polvilhar açúcar” ou “fazer uma calda de açúcar“, etc.. Outro espanto veio no caderno de conservas e doces, com receitas que indicam um longo processo de elaboração, com trocas diárias de água e fervura por muitos e muitos dias. Fala-se de conservas ou doces de peras, cidras, pêssegos, limões, marmelos, abóboras, talos de alface e flores de laranja, por exemplo. Dentre os ingredientes citados, fiz uma listinha dos que mais aparecem ou dos que mais recebem destaque nas receitas ao longo do livro: açúcar, canela, cravo, salsa, coentro, banha de porco, azeite, hortelã, cebola, sal, vinagre, açafrão, farinha branca, água-de-flor, mel, amêndoas, erva-doce, pinhão, alecrim, losna, romã e noz-moscada.

O livro se encerra com três indicações de remédios. A primeira é a Receita de Dom Luís de Moura Para os Dentes (esta me parece muito estranha, mas pelos ingredientes, dá para imaginar que tenha efeito em algumas condições dentárias sim); a segunda é Receita Para Esquinência, que é basicamente amigdalite/inflamação de garganta (das três, me parece a mais eficaz, a mais interessante e a que poderia ser reproduzida e utilizada hoje, tranquilamente); e a última é Receita para Fogo, ou Escaldamento, para pessoas que sofreram queimaduras. O fato de ter “vinagre rosado” entre os ingredientes me deixou receoso, mas a mistura que se propõe, fazendo uma pomada com o tal vinagre mais água rosada, claras de ovo e “pó de bolarménico” (que não faço ideia do que seja! Em pesquisas diferentes, cheguei a “um tipo de argila” ou “mirra“, mas não se é um dos dois, ou nenhum deles), parece aliviar mesmo a sensação causada pela queimadura e ajudar no tratamento.

Misturando saberes da medicina da época com receitas de pratos doces, salgados e conservas, O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal é um bom ponto de partida para estudar a gastronomia e culinária da nobreza portuguesa entre o final do século XV e o início do século XVI. Por aproximação, também é possível pensar um pouco sobre como o Brasil está relacionado a esse recorte da História portuguesa. Isolado, contudo, o livro não tem muito charme, embora seja interessante. Mas acompanhado de um bom contexto histórico, notas para os termos da época e correlações culturais amplas, torna-se uma produção muito boa sobre um tema que está todos os dias em nossa mesa, mas que não necessariamente pensamos sobre ele em termos de construção, problematização e trajetória histórica.

O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal (Portugal, final do século XV, início do século XVI)
Autores: Desconhecidos (compilação por ordem de Maria de Portugal, Duquesa de Parma e Placência)
Versão lida para esta crítica: Primeira edição integral do códice português I.E. 33. da Biblioteca nacional de Nápoles / leitura de Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut; prólogo, notas aos textos, glossário e índices de Giacinto Manuppella; introdução histórica de Salvador Dias Arnaut (Universidade de Coimbra, 1967)
Nota: Esta versão que eu li está disponível online e pode ser lida aqui.
273 páginas

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