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Crítica | A Dançarina do Cabaré (Comissário Maigret #10), de Georges Simenon

Crimes improváveis.

por Luiz Santiago
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A Dançarina do Cabaré é um livro de experimentos na estrutura narrativa primordial de Georges Simenon. A obra se encontra na reta final do ano mais produtivo de sua carreira (o ano de 1931, quando ele publicou nada menos que onze livros!) e traz uma particularidade, apresentando um duplo aspecto dramático. Numa visão mais crítica e ácida, o autor faz uma pintura dos sentimentos da pequena burguesia provinciana, falando paralelamente de seus desvios morais e éticos e de sua necessidade hipócrita e neurótica de manter as aparências de “limpeza cristã“. Já numa outra abordagem, cria-se uma investigação policial com desvios inesperados, na qual encontramos corpos em lugares diferentes, assassinatos em horas que não combinam com o que vimos no próprio livro e personagens que nos confundem em relação ao seu deslocamento e ações na fatídica noite do crime.

A tal “dançarina“, do título, é apenas um recurso de desvio de atenção. Um McGuffin. Ela existe, ela tem lá a sua importância, mas não é com ela, em torno dela e necessariamente ligado a ela que o assassinato acontece e os principais personagens circulam. O interessante é que Adéle parece estar em todo lugar, mas sua presença é apenas um polimento, um enfeite de luxo, um “bônus contextual” para os acontecimentos do livro. No desenvolvimento, temos pela primeira vez algo inédito na série: o Comissário Maigret demora metade do livro para se anunciar oficialmente. Sua figura imponente é indicada em alguns dos capítulos iniciais, aparecendo pouco a pouco em trechos de forte tensão, mas o texto não cita o nome de Maigret. Lemos apenas sobre “o homem de ombros largos e sobretudo“. Até que o Comissário finalmente se faz notar e, para nossa surpresa, opta por manter o disfarce um tantinho mais.

Com esse distanciamento do principal detetive, a aventura acaba exibindo o ponto de vista dos envolvidos por mais tempo, fornecendo ao público um outro caminho de investigação. O próprio processo policial, aliás, é diferente dos nove livros anteriores. A polícia belga (todo o enredo se passa em Liège, no bairro Carré) tem um método diferente, talvez mais lento, mais provinciano, muito preocupado com futilidades ou vícios cotidianos (as cenas com as longas conversas sobre qualidade de cachimbos são hilárias), o que permite que os suspeitos sigam livres, mas vigiados de perto, até que o cerco se feche e as prisões se efetuem. Quem coloca mais “lenha na fogueira” do caso é Maigret, que tem uma atitude que seria considerada criminosa em qualquer investigação policial de hoje em dia. Mas acho que nem preciso vir para o século XXI. Não vejo, por exemplo, detetives do 87º Distrito, ou Poirot, por exemplo, alterando de bom grado e abertamente a cena de um crime. Quando a questionável ação estratégica é revelada, o leitor se espanta imensamente e começa a duvidar ainda mais se o autor irá conseguir ajustar duas das coisas que, até então, estão em lados opostos: o horário e o local do crime.

Todo assassinato, em sua essência, é chocante. Mas existem alguns tipos de crime cuja motivação do assassino é tão torpe, tão comum, tão simples e “barata” (me lembra certos crimes expostos em Júlia Kendall) que gera no observador uma raiva muito especial. Em A Dançarina do Cabaré, esse sentimento se junta também a um impasse de classe, a uma questão de educação familiar e a um estilo de vida “copiado” que infelizmente não é único da literatura de Simenon; está presente em todos os bairros de classe média e alta classe no Brasil e no mundo. Os “bacanas criminosos“. Os portentosos do “colarinho branco” que, eventualmente, acabam sujando suas mãos de sangue. E também eventualmente, por algum capricho raro do destino, não há dançarina, gente pobre ou grupo étnico para colocar a culpa. O que não significa que se fará justiça.

A Dançarina do Cabaré (La danseuse du Gai-Moulin) — Bélgica
Série Comissário Maigret: Livro #10
Escrito em: 
setembro de 1931
Publicado em: 
novembro de 1931
Autor: 
Georges Simenon
Editora original: A. Fayard
No Brasil: Companhia das Letras (janeiro de 2015)
Tradução: André Telles
144 páginas

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